por Wellington Gil Rodrigues (com pequenas correções e inclusões minhas)
CONCLUSÃO MINHA, AO FINAL
Mestre em Educação (UFMA), Professor de Ciência e Religião na Faculdade Adventista de Educação do Nordeste (FAENE) e Coordenador do Núcleo de Estudos em Ciência e Religião (NECIR).
O "conflito" é o que define as relações entre ciência e religião? |
As relações entre ciência e religião na sociedade brasileira geralmente tendem a ser percebidas através de uma ótica dicotomizada, tendemos a construir nossa visão de mundo através de princípios científicos ou religiosos. Os inúmeros avanços da ciência ajudaram a estabelecer a imagem do conhecimento científico como algo quase incontestável, o que provoca em muitos professores uma postura fechada em um cientificismo radical ou em um fundamentalismo religioso quando entram em choque esses princípios.
A imagem da guerra entre ciência e religião foi alimentada pelas recentes discussões geradas pelo Governo do Rio o qual, em 2004, através da Secretaria de Estado da Educação, determinou que as escolas públicas deveriam promover reflexões sobre a criação do mundo por meio de uma abordagem criacionista. Essa política, conduzida pelo casal garotinho, ambos evangélicos, gerou uma série de debates e protestos por parte de cientistas e políticos, os quais foram amplamente divulgados pela mídia, o que contribuiu para alimentar a polêmica. Tome-se como exemplo o título da reportagem da revista Época de 24/05/04 “Rosinha contra Darwin: Governo do Rio de Janeiro institui aulas que questionam a evolução das espécies”, nesse caso política, religião e ciência foram invocadas para explicar o que estava ocorrendo no Rio.
Uma das críticas à proposta do Governo Fluminense era o temor do surgimento de uma competição pela verdade entre os professores de biologia e professores de religião sobre o surgimento da vida, ou seja, que fosse reacendido pela fogueira estatal o velho debate entre criacionismo e evolucionismo. Nesse contexto de posições antagônicas surgiram tentativas de solução da polêmica, geralmente apelando para um entendimento da natureza distinta dessas duas interpretações de mundo, ou seja, de que ciência e religião não devem estar no mesmo plano já que pertencem a contextos diferentes, que o pressuposto da ciência é a dúvida e que a religião é uma questão de fé. Desde a publicação de “Origens das Espécies” em 1859, cientistas e religiosos têm se degladiado numa luta que envolve não só o amor ao progresso da ciência ou o amor ao progresso do evangelho com sua mensagem de Deus como criador e salvador da humanidade, envolve também relações de poder, poder de definição, de nomeação sobre os próprios conceitos do que seja ciência legítima e do que seja religião; poder para definir as fronteiras entre essas visões de mundo (ciência x religião) e para legitimá-las e deslegitimá-las conforme os interesses dos grupos que as mantém.
No entanto, a partir dos últimos 50 anos vários teóricos de vertentes científicas e religiosas têm se empenhando em aproximar essas duas áreas visando com isso oferecer um quadro mais amplo de explicações e tentando se beneficiar das análises desses campos até então vistos como competidores ou incomunicáveis. Entre os construtores de pontes entre ciência e religião destaca-se a obra pioneira de Ian G. Barbour, físico e teólogo, professor de física e religião no conceituado Carleton College em Northfield, Minnesota (EUA). Ele foi o primeiro a lançar as bases dessa aproximação propondo a sua hoje clássica tipologia quádrupla de relações entre ciência e religião na obra “Religion in na Age of Science” de 1990. O modelo de Barbour é composto por quatro categorias principais sobre as relações entre ciência e religião: 1 - Conflito; 2- Independência; 3- Diálogo e 4 - Integração. Apresentaremos a seguir um breve resumo de cada um dos tipos de relação possível entre ciência e religião e sua ligação com o tema de estudo:
1 - CONFLITO: A primeira categoria é a do Conflito: A imagem de “guerra” entre ciência e religião é a mais recorrente no imaginário popular já que a mídia se encarrega de apresentar em letra grande todas as polêmicas envolvendo os pólos da ciência e religião. Curiosamente, os dois grupos responsáveis pela polêmica são concordantes no que tange ao uso da metáfora da guerra, pois ambos assumem que ciência e religião são inimigas, que não há terreno comum que possibilitem negociações e tratados de paz. Os religiosos fundamentalistas não aceitam a teoria da evolução como explicação legítima para a origem do homem e os cientistas ateus consideram a teoria da evolução como a prova da inexistência de Deus, pintando dessa forma o quadro de conflito que caracteriza esse tipo de relação entre ciência e religião. Nota-se claramente que o conflito se estabelece como tipo de relação quando existem posições radicais, extremas e opostas sobre determinados temas, conforme nos afirma Barbour (2004, p.25): [...] tanto o materialismo científico quanto o literalísmo Bíblico alegam que a ciência e a religião tem verdades literais e rivais a afirmar sobre o mesmo domínio (a história da natureza), de modo que é preciso escolher uma delas. Convergem ao dizer que ninguém pode acreditar em evolução e em Deus ao mesmo tempo. Cada um dos dados ganha adeptos, em parte, por opor-se ao outro, e ambos utilizam uma retórica de guerra. Analisando essas relações Macgrath (2005, p. 62) comenta: “Historicamente o modelo mais importante de relação entre ciência e religião é o do conflito‟ ou, talvez até mesmo luta‟. Esse modelo fortemente antagonista continua a influenciar profundamente os debates populares, mesmo se amenizado entre os estudiosos.” O principal ponto da polêmica entre ciência e religião pode ser vista na questão das origens da humanidade. O ser humano, e sua evidente complexidade, encontraram ao longo dos séculos uma explicação através do relato do Gênesis - Deus como o autor do milagre da vida. No entanto, hoje a maioria dos cientistas concorda que essa não é uma boa resposta (pelo menos não da forma como o Gênesis apresenta a origem da vida).
Dawkins - ele quer briga! |
Comentando sobre o poder explicativo do darwinismo sobre essa questão Richard Dawkins afirma: Antes de Darwin, um ateu poderia ter afirmado, pautando-se em Hume: “Não tenho explicação para a complexidade do design dos seres vivos. Tudo o que sei é que Deus não é uma boa explicação, portanto devemos aguardar e esperar que alguém avente algo melhor”. Não posso deixar de sentir que tal atitude, ainda que logicamente correta, não satisfaria ninguém; penso igualmente que, antes de Darwin, o ateísmo até poderia ser logicamente sustentável, mas que só depois de Darwin é possível ser um ateu intelectualmente satisfeito. (2001, p. 24). Richard Dawkins, professor de Zoologia em Oxford (Inglaterra) é considerado hoje o maior expoente vivo do darwinismo, o titulo do livro de onde foi tirada essa citação já dá uma idéia da categoria do conflito, pois em “O Relojoeiro Cego – a teoria da evolução contra o desígnio divino” Dawkins tenta demonstrar contra a visão criacionista que a seleção natural não é aleatória, que ela segue regras estritas e definidas e que o debate sobre a evolução não pode se reduzido ao binômio acaso versus desígnio.
2 - INDEPENDÊNCIA: Para evitar o conflito entre ciência e religião muitos apelam para a categoria da Independência, segundo a qual não há a necessidade de existir o conflito entre essas duas áreas dado que elas se referem a aspectos diferentes da existência humana.
A ciência diz respeito a fatos objetivos, preocupa-se em saber como o mundo funciona, já a religião está mais relacionada ao subjetivo, à realidade última, ao sentido e valores da vida. Esse posicionamento é uma tentativa de manter ciência e religião restritas a um campo próprio, com metodologia e linguagem próprias, evitando cada uma fazer declarações sobre o domínio da outra, de uma forma que a distância e diferença entre ambas garantam que não haverá discordâncias. Barbour aponta dois aspectos da defesa da tese da independência. Primeiro, ciência e religião são independentes porque tratam de domínios separados do conhecimento, esse posicionamento tem representantes tanto entre os religiosos como entre os cientistas.
Gould - ciência para um lado, religião para outro |
Entre os religiosos destaca-se a corrente da neo-ortodoxia a qual tem em Karl Barth um de seus principais teóricos, essa corrente admite que: A esfera principal de Deus é a história, e não a natureza. Os cientistas são livres para prosseguir com seu trabalho sem a interferência da teologia e vice-versa, uma vez que seus métodos e objetos de estudo são totalmente diversos. A ciência baseia-se na observação e razão humanas, enquanto a teologia baseia-se na revelação divina. (BARBOUR, 2004, p. 33). Pelo lado dos cientistas temos como principal defensor da independência Stephen Jay Gould com o seu principio básico dos magesteria não sobrepostos (NOMA*), indicando que cada área tem um domínio separado para se pronunciar. Segundo, a independência pode ser invocada com base na tese de que ciência e religião utilizam linguagens diferentes e cumprem funções também diferentes. A ciência e a religião cumprem papéis completamente diferentes, e nenhuma delas deve ser julgada pelos padrões da outra. A linguagem científica é utilizada fundamentalmente para fins de prognóstico e controle. [...] A ciência formula perguntas cuidadosamente delimitadas sobre fenômenos naturais. Não podemos esperar que ela cumpra papéis que não são seus, como fornecer uma visão de mundo integral, uma filosofia de vida ou um conjunto de normas éticas. [...] As funções específicas da linguagem religiosa, de acordo com os analistas lingüísticos, são as de recomendar um modo de vida, explicitar um conjunto de atitudes e estimular a adesão a determinados princípios morais. (BARBOUR, 2004, p. 35).
Já McGrath (2005, p.68) apesar de não tem uma forma de explicitar a categoria da de independência comenta: A ênfase nas diferenças entre ciência e religião encontra-se nos escritos de muitos estudiosos norte americanos [...]. Langdon Gilkey [...] defende a idéia de que as ciências naturais e a teologia representam modos independentes e diferentes da realidade. As ciências naturais perguntam pelo “como” enquanto a teologia busca o “porque” da realidade. Segundo Barbour a tese da independência é útil para responder àqueles que pensam que o conflito é inevitável, no entanto, ela impede um encontro mais frutífero entre ciência e religião como demonstrado nos dois tipos de relação apresentados a seguir.
3 - DIÁLOGO: outra forma de entender essas relações é através da categoria do Diálogo. Esse diálogo pode surgir na reflexão sobre questões limites que extrapolam o fato científico, (como por exemplo, qual a origem da ordem do universo?). O emprego de analogias científicas tem sido usado como exemplo das relações entre Deus e o mundo, como por exemplo, a transmissão de informação genética que tem seu paralelo religioso como meio de se explicar o contato entre a divindade e a humanidade.
Essas questões demandam explicações que são dadas por ambos os campos, mas respeitando-se a integridade de cada um. O diálogo pode surgir quando ambos não encontram respostas para um determinado questionamento ou ambos concordam em um determinado ponto. Conforme Barbour (2004, p. 38): " O diálogo modela relações mais construtivas entre ciência e religião [...], pode emergir da consideração dos pressupostos da especulação científica, ou da abordagem das semelhanças entre os métodos da ciência e da religião ou da análise dos conceitos de uma área análogas aos da outra". Ao comparar ciência e religião, o Diálogo enfatiza as semelhanças entre pressupostos, métodos e conceitos, enquanto a independência enfatiza as diferenças. Podemos ainda citar McGrath (2005, p. 67): "Ciência e religião são convergentes". São inúmeros os teólogos cristãos ocidentais que acentuam a idéia de que “toda verdade é verdade de Deus”. Baseados nessa premissa, acolhem com satisfação os avanços e desenvolvimentos da compreensão científica do universo, acomodando-os a fé cristã. Tal atitude exige inevitavelmente ajustes no conteúdo da fé em diversos pontos. Essa tendência terá começado com o deísmo inglês no século XVII, embora só se tenha firmado no século XIX. Nota-se que McGrath cita aqui o Deísmo como uma forma de diálogo.
O Evolucionismo Deista é uma das cosmovisões ou estruturas conceituais caracterizadas por Nahor (2005). Pode-se dizer que essa categoria configura uma forma de diálogo ou até mesmo uma tentativa de integração já que um dos princípios Deístas é que Deus é imprescindível no processo evolutivo, Deus em algum momento do passado originou a vida e orientou os mecanismos de formação dos sistemas biológicos, apesar de ter se distanciado do universo criado. Nessa concepção Deus é um ente distante e desinteressado pelos negócios humanos, ou seja, Deus é necessário como hipótese explicativa da origem (o primeiro motor), e criou leis que governam o universo de maneira automática, Ele não interfere mais na realidade criada, o universo funciona como um relógio a corda. acomodação entre verdades religiosas e científicas.
4 - INTEGRAÇÃO: O ápice da aproximação entre ciência e religião é captada pela categoria da Integração, a qual envolve as iniciativas científicas de procurar na natureza, através do método científico, uma “prova” da existência da divindade (teologia natural, design inteligente) e também as iniciativas religiosas de reformular suas crenças com base nas descobertas da ciência, como por exemplo, aceitar o Big Bang como explicação legítima para a origem do universo considerando Deus como o autor do processo. A filosofia de A.N. Whitehead é uma exemplo dessa abordagem.
O mundo atual caracteriza-se por constantes e conflitantes discussões acerca de concepções religiosas e científicas quanto a origem da vida e do universo, no entanto, esforços devem ser envidados para permitir que essas áreas possam contribuir uma com a outra para o desenvolvimento do conhecimento humano. Entendemos que as relações entre ciência e religião são complexas, não podendo ser capturadas totalmente dentro de um único quadro explicativo, mas acreditamos que o modelo conceitual adotado se revelará frutífero para entendermos as perspectivas dos professores da FAFIS sobre essas relações.
REFERÊNCIAS BARBOUR, Ian G. Religion in an Age of Science. San Francisco: HarperSanFrancisco, 1990. ______. Issues in Science and Religion. Ptentice Hall. 1996. ______. Quando a ciência encontra a religião. Tradução Paulo Salles. São Paulo: Cultrix, 2004. Vemos aí uma evidente tentativa de
* Non-overlapping magesteria [NOMA], onde magesteria significa um domínio de autoridade doutrinal..
DISCUSSÃO brevíssima!
Acredito que o esquema explicativo de Barbour, apesar de clássico nos estudos das relações entre ciência e religião, é um tanto ultrapassado. Outrossim, suas categorias de conflito e independência, como são frutos de discussões mais antigas, continuam como boas explicações. Em minha opinião, o modelo de Barbour é demasiadamente pautado em uma perspectiva teológica, que, no fringir dos ovos, peca por não citar fontes mais seculares de estudo das relações entre ciência e religião.
Um campo mais promissor na atualidade, penso eu, são os estudos das relações entre saúde e espiritualidade. A inclusão do "conceito" de espiritualidade na pesquisa acadêmica auxiliou a compreensão do fenômeno religioso de maneira mais alargada, posto que desvinculou os estudos de uma perspectiva puramente judaico-cristã.
Em termos de estudos clássicos, continuo preferindo as diferenciações feitas por Gordon Allport. Na contemporaneidade, tenho apreço pelas abordagens de Ken Wilber e dos franceses (Ferry, Comte-Sponville, Gauchet, etc).
Ainda assim, Barbour é um clássico.
Adios!
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