31.5.11

Ciências cognitivas e as concepções de enação e deriva natural - breve resumo


Por Ronald João Jacques Arendt 
Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


A Concepção de Enação



Para Varela, Thompson e Rosch (1993) há três grandes momentos a serem analisados numa exploração das ciências cognitivas: o cognitivismo, o conexionismo e a enação. A intuição central do cognitivismo, segundo os autores, é que a inteligência se assemelha de tal forma à computação em suas características essenciais, que a cognição pode ser definida por computações sobre representações simbólicas. Baseado na afirmação de que o comportamento inteligente pressupõe a capacidade de representar o mundo de certa maneira, o ponto de vista cognitivista deduz que só será possível explicar o comportamento cognitivo se for possível supor um agente se representando traços pertinentes das situações em que se encontra. "Na medida em que sua representação de uma situação seja precisa o comportamento do agente será bem sucedido." (Varela e cols., 1993, p. 73). No conexionismo, avaliam os autores, considera-se que os cérebros operam de maneira distribuída com base em interconexões massivas, de forma que as conexões efetivas entre conjuntos de neurônios se modifiquem em função do desenrolar da experiência. Enquanto o tratamento da informação simbólica, no modelo cognitivista, repousava em regras seqüenciais, localizadas, no conexionismo os conjuntos apresentam capacidades auto-organizadoras, distribuídas, o que garante uma equipontencialidade e imunidade relativas, face a possíveis mutilações do sistema. No conexionismo não há necessidade da intervenção de uma unidade central de tratamento visando a guiar o conjunto da operação. O sistema opera 
com a noção complexa de propriedades emergentes. A "passagem de regras locais a uma coerência global está no coração do que se costumava chamar auto-organização, nos anos cibernéticos. Hoje, prefere-se falar de propriedades emergentes ou globais, de dinâmica de redes, de redes não lineares, de sistemas complexos, ou mesmo de sinergética." (Varela e cols., 1993, p. 136)

A pressuposição tácita do cognitivismo e do conexionismo, segundo Varela e colegas, é a de um realismo cognitivo: o mundo pode ser dividido em regiões de elementos e tarefas discretos. A cognição, nesta abordagem, consistirá numa resolução de problemas que deve, para ser atingida, respeitar os elementos, as propriedades e relações próprias a estas regiões já dadas. Em ambos os modelos permanece o projeto de incorporar o conhecimento do mundo anteriormente existente na forma de uma representação (com a re-apresentação deste mundo). 

Varela e colaboradores (1993) pretendem inverter este projeto e tratar o saber dependente do contexto não como um artefato residual que poderá ser eliminado progressivamente pela descoberta de regras cada vez mais elaboradas, mas como a essência mesma da cognição criativa. Tomando o exemplo da percepção da cor, os autores argumentam que as cores não estão lá fora, independentes de nossas capacidades perceptivas e cognitivas, nem "aqui dentro", independentes de nosso meio biológico e nosso mundo cultural. 
"Nossa intenção é contornar inteiramente esta geografia lógica do ‘interior contra exterior’ estudando a cognição não como reconstituição ou projeção, mas como ação encarnada" (Varela e cols., 1993, p. 234). A cognição dependerá dos tipos de experiência que decorrem do fato de se ter um corpo dotado de diversas capacidades sensório-motoras que se inscrevem num contexto biológico, psicológico e cultural mais amplo. 
"Recorrendo ao termo ação, queremos sublinhar [...] que os processos sensoriais e motores, a percepção e a ação são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida. Com efeito, eles não estão associadas nos indivíduos por simples contingência; eles evoluíram juntos." (Varela e cols., 1993, p. 234)

A enação, termo cunhado pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1980, citados por Varela e cols., 1993), a partir da expressão espanhola en acción pode então ser entendida a partir de dois pontos: por um lado, a percepção consiste numa ação guiada pela percepção, isto é, o estudo da percepção é o estudo da maneira pela qual o sujeito percebedor consegue guiar suas ações numa situação local. "Na medida em que estas situações locais se transformam constantemente devido à atividade do sujeito percebedor, o ponto de referência necessário para compreender a percepção não é mais um mundo dado anteriormente, independente do sujeito da percepção, mas a estrutura sensório-motora do sujeito." (Varela e cols., 1993, p. 235). Por outro lado, as estruturas cognitivas emergem dos esquemas sensóriomotores recorrentes que permitem à ação ser guiada pela percepção. É a estrutura sensório-motora, "a maneira pela qual e sujeito percebedor está inscrito num corpo, [...] que determina como o sujeito pode agir e ser 
modulado pelos acontecimentos do meio." (Varela e cols., 1993, p. 235)

A Concepção de Deriva Natural

A análise de Varela e colaboradores não se atém unicamente aos processos cognitivos: inclui também uma crítica aos modelos neo-darwinistas da evolução, no qual a seleção natural é basicamente entendida em termos de uma adaptação ótima ao ambiente. Maturana e Varela (1980, citados por Varela e cols., 1993) proporão o conceito de deriva natural. "A evolução enquanto deriva natural é a contrapartida biológica da cognição entendida como enação" (Varela e cols., 1993, p. 253). Partindo do conceito de satisficing (isto 
é, a adoção de uma solução minimamente suficiente, não tão ótima mas ainda assim aceitável, no sentido que ela ultrapassa um limiar de satisfação) ao invés do de otimização, tal concepção pós-darwiniana se formula em quatro pontos principais (Varela e cols., 1993, p.266):

1. A unidade da evolução (em qualquer nível) é uma rede capaz de um rico repertório de configurações auto-organizadoras.

2. Submetidas a uma acoplagem estrutural com o meio, estas configurações engendram uma seleção, processo incessante de satisficing que dispara (mas não especifica) mudanças nas trajetórias viáveis.

3. A trajetória ou o modo de mudança específico (não único) da unidade de seleção é o resultado entremeado (não ótimo) de múltiplos níveis de sub-redes de repertórios auto-organizados tendo por objeto uma seleção.

4. A oposição entre fatores causais internos e externos é substituída por uma relação de co-implicação, uma vez que o organismo e o meio se especificam um ao outro.

Para Maturana e Varela (1980, citados por Varela e cols., 1993, p. 266), esta concepção da evolução dependerá da possibilidade de aplicar conjuntamente três condições:

1. A riqueza das capacidades auto-organizadoras das redes biológicas.

2. Um modo de acoplagem estrutural permitindo que as trajetórias viáveis passem o teste do satisficing.

3. A organização dos processos em sub-redes modulares que interajam por bricolagem (isto é, que interajam a partir das qualidades que revelam no decorrer do processo de desenvolvimento).

O ponto crucial desta concepção é que não se conserva a noção de um ambiente independente, já dado; ao invés disto, insiste-se que a noção de um ambiente não pode ser separada do que os organismos são e o que eles fazem.  Varela e colaboradores (1993) nos propõem uma analogia que permite expressar esta concepção: 

"João precisa de um terno. Num mundo perfeitamente simbólico e representacionista, ele vai a um alfaiate, que toma suas medidas e confecciona um belo terno em conformidade às especificações exatas de suas medidas. Entretanto, existe uma outra possibilidade evidente, que não exige tanto da parte do meio ambiente. João se dirige a diversas grandes lojas e escolhe um terno que lhe caia bem entre os que estão disponíveis. Apesar destes não se adequarem exatamente a ele, eles são satisfatórios, e João escolhe o melhor do ponto de vista da conveniência e do gosto. Temos aqui uma boa alternativa à seleção enquanto procedimento utilizando certos critérios ótimos de valor adaptativo. A analogia autoriza entretanto um refinamento suplementar. Como todo humano, João não pode comprar um terno independentemente do que se passa em sua vida. Comprando um terno, ele leva em conta a maneira pela qual sua aparência vai afetar a atitude de seu chefe no trabalho, a atitude de sua namorada, e é possível também que ele fique atento a fatores políticos e econômicos. Com efeito, a decisão mesma de comprar um terno não é dada de repente enquanto problema; ela é constituída pela situação de vida global de João. A escolha final deste se apresenta como a satisfação de certas pressões muito fracas (por exemplo, estar bem vestido), mas não como uma adequação precisa – e ainda menos uma adequação ótima – a qualquer uma destas pressões." (Varela e cols., 1993, p. 262)Fica claro nesta analogia que não ocorre uma adaptação ótima a um mundo dado de antemão. A vida do sujeito na deriva tem mais a ver com a abertura a um devir não previsto, a um agir mais próximo a uma flutuação na rede de configurações auto-reguladoras, conforme expressão cara a Maturana e Varela (1980, citados por Varela e cols., 1993), do que a um ajuste preciso à realidade prévia fixa.


Os Programas de Pesquisa do Cognitivismo, do Conexionismo e da Enação

Varela e colaboradores (1993) sintetizam, então, os programas de pesquisa expostos procurando formular respostas a três questões fundamentais:

Questão n° 1: O que é a cognição?  
Questão n° 2: Como ela funciona?  
Questão n° 3: Como saber se um sistema cognitivo funciona adequadamente?

No programa cognitivista a cognição será o tratamento da informação enquanto computação simbólica, no conexionismo a emergência de estados globais numa rede de componentes simples e na enação a história da 
acoplagem estrutural dos organismos com o meio. No primeiro programa o sistema interage unicamente com a forma dos símbolos, não com sua significação. O cognitivismo será bem sucedido "quando os símbolos representam de maneira apropriada certos aspectos do mundo real, e quando o tratamento da informação conduz a uma resolução bem sucedida do problema submetido ao sistema" (Varela e cols., 1993, p. 75). No segundo programa regras locais geram operações individuais e regras de transformação geram laços entre os elementos. O conexionismo será bem sucedido "quando as propriedades emergentes (e a estrutura resultante) são identificáveis a uma capacidade cognitiva – uma solução adequada a uma tarefa dada" (Varela e cols., 1993, p. 146). O terceiro programa funciona por meio de uma rede que consiste em níveis múltiplos de sub-redes sensório-motoras interconectadas. A enação funcionará adequadamente "quando o sistema cognitivo se tornar parte integrante de um mundo existente durável, quando ele der forma a um mundo novo, como no caso da história da evolução" (Varela e cols., 1993, p. 280). Percebe-se que em sua exploração dos modelos mais significativos das ciências cognitivas, o terceiro programa ultrapassa os anteriores em elaboração teórica: a cognição não é mais entendida como uma computação formal de símbolos, nem é abordada como uma solução adequada a uma tarefa dada, mas a ação do sujeito é pensada enquanto participante de uma rede complexa constituída em níveis múltiplos de sub-redes interconectadas que supera a dicotomia indivíduo/interno versus meio/externo: o sistema cognitivo do sujeito será parte integrante de um mundo existente durável porém cambiante, no qual indivíduo e meio são instâncias que se co-implicam.


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