O poster abaixo gerou uma polêmica no facebook de uma ex-aluna minha da Psicologia. Reproduzirei abaixo os argumentos utilizados na polêmica através de um texto que eu adaptei livremente (intento não mudar a essência das argumentações). Para quem curte o diálogo entre psicologia social e psicologia evolutiva, vale a pena acompanhar.
Claudiomir diz: "Bater em alguém não faz de ninguém mais ou menos homem. E essa campanha já está dando no saco. Alguém conhece um gay que foi espancado? E um hétero? Ah, tem um monte, né? Pessoas idiotas batem em gays, gordos, pretos, brancos, homens, mulheres, crianças, idosos. Não se trata da vítima, mas sim do agressor. Faltou o "Não curti".
Patrícia diz: "Caro Claudiomir, sua argumentação faz sentido quando consideramos a supremacia do forte sobre o fraco presente em nossa cultura. Dentro desse ponto de vista, homens aprendem a "bater" em mulheres, jovens em idosos, brancos em negros, pobres em ricos, e assim por diante (note que coloquei a palavra "bater" entre aspas para que o termo seja entendido além do sentido concreto). O que a publicidade faz é pegar um recorte específico: trata-se aqui da violência contra homossexuais. E sim, as pessoas apanham ou são mortas por conta única e exclusivamente desta condição, é só olhar as estatísticas (ou abrir o jornal, ver a TV). A publicidade apenas "brinca" com um fato muito conhecido da psicologia, que é a homossexualidade latente (na forma de medo ou desejo) de homofóbicos. O fato de existirem outros membros de categorias sociais que sofrem humilhação não tira o mérito da campanha. Apenas nos alerta sobre o quanto ainda estamos atrasados.
Claudiomir diz:" Patrícia, a supremacia do forte sobre o fraco não é um traço da nossa cultura: é um traço da nossa espécie. Humanos subjugam humanos há milênios e muito provavelmente isso se perpetuará até o fim dos dias. Bater com aspas e sem aspas(principalmente) não é um privilégio de homens, nem de heterossexuais, nem de brancos, nem de ricos - e muito menos de qualquer outra "categoria".
Eu desconheço essa tese de que exista um assassinato em massa de homossexuais. Ano passado, segundo números das organizações LGBTTOSJSOXYZ foram mortos 254 homossexuais.
Vamos analisar os fatos.
A maioria das mortes (40%) de gays ocorre por facadas ou estrangulamento DENTRO DE RESIDÊNCIA própria. Mortes dentro de casa normalmente denotam um acesso franqueado ao assassino à esta residência, com anuência do residente. A não ser que gays costumem conviver com homofóbicos assassinos, chegamos à conclusão que dificilmente são crimes motivados por homofobia. As chances de latrocínio ou vingança são muito maiores.
Os travestis correspondem a 37% dos mortos, ou 72 pessoas. Espero que ninguém seja capaz disso, mas se um experimento colocasse brancos ricos de olhos azuis frequentando locais ermos durante a madrugada e trabalhando em atividades ilícitas, possivelmente teríamos um número muito parecido de brancos-ricos-de-olhos-azuis mortos anualmente.
Não existem dados oficiais sobre moradores de rua assassinados. Será que foram menos de 250 baixas no ano? Numa rápida pesquisa no Google eu contei 64; só em Alagoas foram 39. Onde estão as passeatas em favor deles? Onde está o lobby do congresso para protegê-los? Onde estão as rosas em seus túmulos?? Aliás, onde estão seus túmulos?
Na verdade, o lobby gay hoje é o lado forte, que espanca o bom senso e fantasia números e fatos. O lado fraco é o dos moradores de rua, que vivem como almas penadas e quando morrem, até isso não são mais.
Patrícia diz: "Só tenho a dizer que a nossa espécie caracteriza-se pela aprendizagem. Por exemplo, o que falei no primeiro post está claro e transparente para as pessoas que aprenderam a “ler” a realidade de uma maneira diferente do que a escola, a mídia e aqueles que detêm o poder em geral não estão interessados que as pessoas entendam. Mas já que me dispus a comentar diretamente uma posição que discordo, realmente devo uma explicação, apesar da preguiça em explicar. Espero sinceramente que me faça entender claramente. E obviamente ninguém tem o dever de concordar com as minhas palavras, elas estão aqui apenas para reflexão. Vão aqui algumas considerações:
1) Falácia: "a supremacia do forte sobre o fraco é um traço da nossa espécie" – trata-se de uma deturpação grosseira das idéias de Darwin, aplicada ao capitalismo (já adianto que não sou comunista, esse argumento sempre aparece – e em um sentido pejorativo/depreciativo – quando alguém pronuncia a palavra “capitalismo”). Sou psicóloga, inclusive trabalho com a perspectiva da existência de diferenças individuais, sejam elas biológicas, sociais e culturais. O que nós não podemos é transformar as diferenças em desigualdades. Conforme disse no post anterior, o ser humano se caracteriza pela aprendizagem, e isso é o que distingue a nossa espécie das demais. Nascemos com um cérebro preparado para aprender. Por isso, somos mais um ser social do que biológico. Aprendemos a ser o que tem de bom e de ruim em nossa espécie: a ter preconceito, a ser solidário, a amar, a competir... Não teríamos saído das cavernas se nos comportássemos ainda como fazíamos há milênios. Abrimos mão de uma série de instintos para convivermos em sociedade. Portanto, dizer que a competição, ou a supremacia do “forte” sobre o “fraco” é da nossa natureza é apenas de um argumento que serve de justificativa para perpetuarmos as desigualdades que de outra forma podemos abolir.
2) Estatísticas – como professora de estatística, sei que os dados não falam por si, mas devem ser interpretados. É por isso que cada um dá a conotação que lhe interessa mais quando as estatísticas são lançadas: um político fala que a cidade melhorou, o outro que piorou. Mas os dados não são os mesmos? Sim, mas a interpretação vai ser diferente dependendo do foco que você der. Por isso devemos estar atentos para não acreditarmos no primeiro dado que aparece. Precisamos ir à fonte e verificarmos por nós mesmos. (a) “Ano passado (...) foram mortos 254 homossexuais” – a questão aqui não é quantos homossexuais morreram e, sim, por que foram mortos. Obviamente, se 10% da população brasileira se auto-intitula homossexual, deve-se manter a proporção em termos de morte (a não ser que algo espetacular, como um assassinato em massa ocorresse, o que ninguém aqui falou que estaria acontecendo , não é?). Se 254 homossexuais morreram, mas a maioria por causa da sua condição de ser homossexual, então temos uma questão sexual séria a ser investigada e solucionada. É muito fácil encontrar notícias sobre pessoas que morreram porque são homossexuais, negros, índios, mulheres, mas não conheci ninguém ainda que morreu por causa da sua condição de heterossexual. Ou seja, a heterofobia, como muitos demagogos andam espalhando pela TV, é outra falácia; (b) o que apresentei acima faz um gancho com o que você fala em seguida: “A maioria das mortes (40%) de gays ocorre por facadas ou estrangulamento DENTRO DE RESIDÊNCIA própria”, daí concluindo que não se trata de uma condição da homossexualidade. Primeiro, gostaria de saber a proporção de héteros que morrem por latrocínio, ou por vingança, dentro de casa. Será que é a mesma? Não adianta apresentar esses dados, precisa comparar com a população de héteros para saber se há ou não algum efeito da orientação sexual. Fico aguardando aqui com curiosidade e desejo de que a proporção seja a mesma. Segundo, e mais importante, 60% das informações sobre assassinatos permanecem inexplicadas pelo seu argumento. Ainda tem muita morte que precisa de uma explicação, e em estatística dizemos que isso é significativo.
3 - Preconceito: o seu argumento sobre os travestis, prefiro chamar de preconceito. Sim, é PRECONCEITO. Primeiro, nem todo travesti trabalha com “atividades ilícitas”; segundo, se a atividade ilícita a que você se refere é a prostituição, saiba que não é ilegal se prostituir, apenas é ilegal a cafetinagem; terceiro, por que você acha que pessoas brancos-ricos-de-olhos-azuis não estão morando/trabalhando em locais “ermos”?; quarto, quem são os clientes dos travestis que se prostituem? Por que eles não morrem, se frequentam os mesmos locais “ermos”?; (d) “Não existem dados oficiais sobre moradores de rua assassinados”: isso já implica em um preconceito, os moradores de rua são tão invisíveis para a sociedade que ninguém se preocupa nem em lhes fazer estatística sobre morte. Concordo, deveríamos ter mais atenção aos moradores de rua. Agora, lhe pergunto: se os moradores de rua estão menos organizados que os gays, isso implica que devemos parar de lutar pela causa dos gays, ou começar a lutar pelos direitos dos moradores de rua? Esse argumento que você coloca é do tipo: “para o mundo que eu quero descer”. É um argumento super comum que se usa no Brasil: “com tanta coisa para fazer, crianças morando nas ruas, salários baixos dos professores, seca no nordeste, para quê gastar dinheiro com um kit gay?”. Devemos cuidar dos moradores de rua, dar condições para o trabalhador no campo, educar as pessoas para que não sejam preconceituosas contra gays. Isso tudo ao mesmo tempo. E essa história de lobby gay é outra falácia.
Espero que as palavras sirvam para reflexão, se não tiver preguiça de ler. Afinal, refletir dá trabalho.
Patrícia S. Lúcio possui Graduação em psicologia pela UFMG (2004) e mestrado em Psicologia do Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG (2008). Atualmente, é professora substituta na UFMG. Possui experiência profissional na docência do Ensino Superior, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão. A dissertação de mestrado inclui as áreas de avaliação cognitiva da leitura e psicometria (construção de instrumentos psicológicos de medida). Interesse principalmente nas áreas de processos básicos, psicologia cognitiva, psicologia do desenvolvimento da criança, desenvolvimento da linguagem oral e escrita e avaliação psicológica.
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