20.1.12

FILOSOFIA E FELICIDADE

Marta Petersen

Guadalajara / Temas – A felicidade como um modo de vida


Há alguns anos, discutindo com um de meus antigos professores sobre uma pergunta sempre presente no âmbito da formação filosófica: Em que consiste ser um bom filósofo?, soltou uma resposta que pode parecer simples, sobretudo para aqueles que pensam que a filosofia é um discurso de idéias abstratas e difíceis, não destinado ao homem da rua, senão a uma elite intelectual inoperante para a vida: "O bom filósofo não é o que pensa muito, mas o que sorri muito".

Efetivamente, parece haver uma coincidência entre o começo da história da felicidade e a própria filosofia. Uma vez deslocadas as perguntas pelo ser e pela natureza, o núcleo dos filósofos pré-socráticos: Anaximandro, Heráclito, Parménides, surge no âmago da filosofia socrática a pergunta pelo homem, sua origem, destino e felicidade. No entanto, é evidente para todos que a felicidade não nasce com a filosofia. Muito antes dos primeiros passos da reflexão filosófica, havia pessoas felizes e infelizes no mundo. O que nasce com a filosofia, em sua triple vertente de saber estrito sobre as coisas, em sua pretensão de orientar a vida e propor um modo de vida; é justamente um novo modo de pensar a felicidade e, portanto, uma nova forma de procurá-la.

FELICIDADE E DESEJO

Proposta como euforia, ausência de tristezas, harmonia e mesura, com seu componente inevitável de sorte e destino, de Tales a Epicuro, encontramos estes amigos da sabedoria empenhados em dar soluções, propor técnicas, difundir mensagens apropriadas, resolver por indicação e prescrição. Certamente seus discursos divergem, contradizem-se, opõem-se, complementam-se; mas apesar de suas diferentes vozes, o fim é o mesmo: trata-se de tornar possível uma existência feliz.

Entre as múltiplas propostas das escolas helênicas e romanas, podemos opor uma corrente preocupada em realizar um estado doce, sereno, estável, a outra desejosa de incandescência, de fúria, de movimento, de cumprimento dos desejos. A primeira escola, eudaimonista, reúne (1) os estóicos e epicureus; a segunda, hedonista, (2) os cínicos e os cirenaicos. Os primeiros (1) pretendem atingir a felicidade mediante a extinção ou a redução dos desejos; os outros (2) pretendem atingí-la mediante a afirmação, cumprimento e celebração dos mesmos. O pressuposto que bate no fundo destas quatro escolas é que a discrepância entre nossos desejos e a realidade é o que nos torna infelizes. 


Para os estóicos o caminho da felicidade passa pela extinção dos desejos. Tudo o que procede dos instintos, os impulsos ou as paixões deve ser objeto de um holocausto perpétuo. As paixões são vãs diante da eternidade do nada e da morte. A técnica estóica parece simples: aprendamos a odiar o júbilo; se vivermos como se estivéssemos quase mortos, a morte, quando chegar, encontrará pouco para levar.

Por outro lado os epicureus propõem a estrita obediência a uma chamada dietética dos desejos. Conhecemos a história: segundo Epicuro, trata-se de dosar os desejos, de classificá-los e reparti-los para usá-los da melhor maneira possível e satisfazer apenas os necessários, aqueles que exigem satisfação sob pena de morte. Comida, bebida, descanso, amigos e filosofia satisfazem os desejos necessários do corpo e do espírito humano. O truque é satisfazê-los sem ostentação; o pão é suficiente para saciar a fome e a água para saciar a sede; nada de comida sofisticada e vinhos exóticos. Este é o caminho da ataraxia que conduz à felicidade: tristes e escassas são as flores no famoso jardim de Epicuro. 

Ao Pórtico estóico e ao severo jardim epicúreo, opõem-se a petulância dos cínicos e a alegria da ágora cirenaica. Defensores ardentes da resolução dos desejos, onde aparecem e quando aparecem, a maioria pratica um materialismo subversivo e um sensualismo ativo. Realizar os desejos sem inquietação, sem culpabilidade, sem perguntas mortíferas: se houver um banquete, bebamos vinho, caso contrário, a água clara da fonte pública será suficiente. Trata-se de terminar o mais rapidamente possível com a tirania do desejo para recuperar a serenidade e a tranqüilidade de espírito. Diferentes em seu conteúdo, todos coincidem na forma: o essencial reside na vida boa, vida bela, na aposta de que na existência cotidiana, teoria e prática podem reconciliar-se, que a felicidade é de alguma maneira questão de vontade e decisão. 


Embora o hedonismo antigo seja uma filosofia do prazer, é uma filosofia que recomenda a prudência e a frugalidade. Poderíamos dizer que é um caminho para evitar a infelicidade e a dor numa época em que a incerteza era a constante da vida e a situação política das cidades atenienses muito precária. O que hoje entendemos por hedonismo, pouco ou nada tem a ver com os primeiros aportes gregos. Em poucas palavras, para o homem de hoje, Epicuro não era epicureu.

Estas escolas gregas tardias representam, em geral, a maior tentativa de viver segundo a filosofia já despojada da religião, mito e tragédia.

Pela primeira vez a filosofia tenta regular os costumes, educar para a vida e preparar para a morte. É a maior tentativa de transladar à realidade completa da vida; à política; à amizade, espremer o sumo, produzindo as grandes idéias da filosofia grega. São os herdeiros de Sócrates quem colhem o fruto de sua morte, sabendo que na vida cotidiana, a filosofia não é uma apólice de seguros contra o infortúnio.




O ENCANTADO MUNDO DO ALÉM

Herdeiras, no mundo ocidental, da tradição platônica, a maioria das religiões oferece uma perspectiva de felicidade que transcende a vida terrestre, considerada como mera passagem. A esperança de uma felicidade eterna, fundamentada na crença no além, sempre se manifestou como um convite para superar os prazeres momentâneos. A maioria das religiões propõe um sistema de regulação e autocontrole dos desejos, retomando as posições estóicas unidas à virtude e a boa vida. A frase franciscana "Desejo pouco e o que desejo, desejo-o muito pouco" pode resumir este projeto. Desprender-se dos bens do mundo, viver austeramente, para chegar ao paraíso.

A idéia do paraíso como lugar de felicidade foi sendo concretizada nos primeiros séculos do cristianismo. Para as culturas que habitaram terras desérticas, o paraíso se enche de árvores, flores, frutos, riachos: o jardim do Éden, anseio e sonho de uma vida ameaçada. No Renascimento é impossível pensar num paraíso sem música, expressão do mais sublime do homem, somado a esta construção imaginária: coros de anjos, harpas e alaúdes e roupas elaboradas. O barroco integra as alturas, os materiais preciosos e as grandes cúpulas como expressão de seus ideais culturais.

Hoje o paraíso já não é o que era. A revolução científica deslocou a morada de Deus e dos anjos que antes pareciam ter residência fixa. Hoje, para a maioria de nós, o paraíso inclui só o reencontro com os que amamos. De fato a aspiração de encontrar no além nossos seres queridos é uma aspiração que atravessa toda a história cristã.

Portanto, a busca da felicidade tem uma longa história e se transformou numa idéia tão geral que passou a ter um sentido infinitamente vago. Ambição de todos os homens, centro da vida moral, a vida feliz parece estar sempre no horizonte, que como linha imaginária retrocede na medida em que avançamos.


A FELICIDADE MODERNA: UM NOVO MODO DE VIDA

Nossa concepção moderna de felicidade está enraizada no utilitarismo: máximo de felicidade para o maior número de pessoas. Na essência desta definição se inclui algo ausente nos antigos: o bem-estar. Com o nascimento da moderna burguesia, que se opõe tanto ao luxo excessivo da nobreza como à rudeza da vida medieval, nascendo a preferência pela comodidade. O gosto pelo bem-estar, segundo Tocqueville, é a paixão democrática por excelência, paixão pela qual se sacrifica tudo, incluindo a paixão pela liberdade. Popularizamos tanto esta idéia que a confundimos com felicidade. A aposta estóica de se reduzir, evitar as dores, não exigir nada recebe uma resposta por parte dos economistas de hoje: vamos comprar. consumir; a felicidade está aí, ao alcance da nossa mão.

Frente a esta visão de felicidade, relacionada sempre com o cumprimento dos desejos, vivemos hoje um paradoxo: os sonhos de uma geração, considerados por nossos ancestrais como uma utopia já realizada, aviões que cruzam os céus, tecnologia, comunicações, higiene, medicina especializada, aparece hoje na ordem do adquirido, da decoração cotidiana e portanto, não mais ocasião de desejo. Parece que a felicidade não se acomoda ao cotidiano e que diante do bem-estar estamos sempre numa relação contraditória: nós o consideramos como uma coisa que existe e ao mesmo tempo como uma exigência perpétua. O bem-estar, pelo menos na aposta da maioria das sociedades ocidentais, deve se transformar sempre em melhor-estar. A felicidade foge pelos mesmos caminhos pelos quais pretendemos encontrá-la: se dura se dilui na vida cotidiana; bem-estar e tédio são apenas duas faces da mesma moeda.

Nossas sociedades de bem-estar consomem como nenhuma antes o fez na história da civilização. Vivemos no reino da inovação permanente, no reino do consumo inovador, no reino da diversão obrigatória. Conseqüentes com os grandes mercantilistas da história, os comerciantes de hoje sabem que a infelicidade é inimiga do negócio. Esta não é uma idéia nova: muito antes do que a mercadotecnia existisse como disciplina administrativa, Veneza entendeu muito bem a importância do ambiente para o consumo. Veneza, a Sereníssima, a cidade dos grandes palácios, da luz rosada, da quietude, da beleza, da segurança e da paz, é a antecessora por antonomásia de nossos modernos parques de diversões e shoppings.

Por outro lado, a idéia de que a felicidade é adquirida com esforço e trabalho, herdada da moral tradicional , que é um prêmio ao cumprimento do dever, ao sofrimento necessário e trabalho da vida, transformou homens e mulheres do século XXI em seres esquizofrênicos. Vivemos de segunda-feira a sexta-feira para trabalhar. Nestes dias nosso paradigma é a competitividade, a formalidade, a seriedade e a ordem. Sexta-feira à noite, começa o lazer, a diversão e os valores se transtornam: notívagos preguiçosos mergulhamos numa voragem de prazer ―legítimo, pois é merecido. Em poucas palavras, quanto ao nosso projeto de vida, somos estóicos e kantianos durante a semana e hedonistas e cínicos aos sábados e domingos.

REPENSAR A VIDA

Durante algumas décadas houve um certo desinteresse filosófico pelo problema da felicidade. A aposta moderna sobre a razão e o progresso, estimulado pelo desenvolvimento das ciências e da tecnologia, fez pensar que a felicidade surgiria como conseqüência lógica e imediata dos avanços vertiginosos. Na metade do século XX as guerras, desastres ecológicos e mortes em massa arrebentaram a fé do homem nas grandes utopias. No campo filosófico Albert Camus, no primeiro ato de sua obra Calígula, afirma de maneira aterrorizadora: "Os homens morrem e não são felizes"; e por outro lado, T. Adorno, diante da visão do holocausto, nega a possibilidade da própria filosofia: "Não se pode fazer filosofia depois de Auschwitz". Termina-se o encantamento, caem os meta-relatos e sempre tarde, em palavras de Hegel, a filosofia é "como uma coruja que empreende seu vôo ao entardecer", nos últimos quarenta anos, em oposição, aparecem com mais freqüência textos inteiros dedicados à reflexão filosófica da felicidade.

Se a filosofia quiser realmente ir mais além do âmbito estritamente acadêmico e tiver uma palavra significativa para os homens e mulheres de hoje, não se pode continuar pagando a saturada receitas dos remédios psicológicos e esotéricos contra a depressão e a tristeza que abundam no mercado. Deve refletir profundamente a noção da própria felicidade e seu papel como motor das ações humanas: É certo que a finalidade da vida é a felicidade? A felicidade existe? É uma obrigação ou um direito?

Nesta linha, as contribuições de Zubiri, Aranguren, Pedro de Velasco e dos filósofos da libertação latino-americanos podem ser especialmente iluminadoras. A felicidade não é uma "coisa" que se procura com um mapa como um tesouro escondido: é o sentimento que acompanha a progressiva realização de homens e mulheres no mundo, a sua progressiva plenitude. A abertura de possibilidades de liberdade para que cada dia mais homens e mulheres desfrutem do gigantesco haver humano, que não é humano se não for um haver compartilhado, é a única possibilidade de poder ir sendo felizes ― assim, no gerúndio, não no futuro ― mesmo em um mundo gravemente desajustado. A felicidade neste sentido não é uma tarefa, mas sinal e manifestação do estar agindo humanamente numa realidade humanizada.

Supõe-se a ocupação permanente do homem. Em suas circunstâncias atuais, seria atender o presente e amar a vida. Não falamos do imediatismo do desejo senão de uma ativa construção, sempre condicionada por situações concretas. Poderemos continuar sendo felizes mesmo num mundo injusto na medida em que possamos continuar desfrutando de todos e fazendo pela vida, pois o maior bem do homem é o próprio homem. Atuar de modo humano e de forma humanizadoramente é nossa única possibilidade. O mundo irá mudando na medida em que foros avançando nesta direção.


O acima mecionado não quer dizer que o prazer e o bem-estar não sejam um elemento fundamental da realização humana e que desde sua importância moral a felicidade não seja um motivo fundamental e motor das ações humanas. Mas amar a vida é amá-la com suas vicissitudes, com o sofrimento e a dor nunca distantes do cotidiano. É muito sintomático que nos discursos dos filósofos europeus contemporâneos, antes tão empenhados na autonomia e na individualidade, apareçam cada vez com mais freqüência, as palavras compaixão, solidariedade, amabilidade, como lugar de reflexão privilegiado para os homens e mulheres de nosso ainda nascente século.
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Marta Petersen. Escreveu este artigo para a revista Mirada, www.revistamirada.com

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