Post em homenagem a meu aluno Gustavo Emerick. Depois me diz o que você achou! rs!
Psicologia Evolucionista: uma bobagem moral
Publicado em 26/07/2010 por Nypoa
A noção teleológica[1] orignalmente introduzida por Aristóteles permeou o pensamento científico por séculos. O Cristianismo, por sua vez, fortaleceu essa concepção. Essa noção de ciência adequava-se muito bem à percepção da Igreja. Se a natureza manifesta valor e propósito, isso pode muito facilmente ser associado aos valores e propósitos divinos. Afinal, de acordo com o Cristianismo, deus criou o mundo e tudo o que há nele – logo, só era possível esperar-se que tudo o que existe e acontece, está ali por algum propósito.
Mas essa noção foi sendo gradualmente substituída à medida em que a ciência foi conhecendo mais sobre a natureza. Muitos cientistas foram minando essa percepção, sendo que Galileo ocupa um lugar de destaque. O fato dele ter mostrado que é a Terra que gira em torno do Sol não foi, em si, a grande subversão. Mas antes, foi o uso de categorias explicativas que não se encaixavam no modelo teleológico aristotélico.
No entanto, como diz James Rachels, “Biologia é outra história”. A noção de função quando aplicada a organismos vivos parecia muito mais sólida. Cada parte de um organismo vivo cumpre um papel, função ou propósto quanto a manter o organismo vivo. E essa noção era, naturalmente, extrapolada aos seres vivos como um todo e, em particular, ao ser humano. Até Darwin aparecer e mudar tudo. Mais do que uma explicação sobre a origem das espécies, a teoria evolutiva minou de forma irreversível justamente o que era mais caro à Igreja: o propósito. Segundo Darwin, um designer consciente simplesmente não participa desse processo.
Mas, francamente, escrever um post para atacar o criacionismo, ou desing inteligente ou qualquer noção religiosa dessa natureza tendo como foco a teoria de Darwin é chover no molhado. Essa não é a bobagem. Minha intenção é abordar alguns desvios ou exageros que surgiram quase que imediatamente após A Origem das Espécies ter sido publicado, e que permeia fortemente isso que eu chamo de ateísmo ingênuo. Tomo como exemplo disso o artigo “Das Questões Morais”[2].
Que a ciência como um todo vem, ao longo do tempo, desconstruindo todo o arcabouço religioso, é um fato. Mas isso não implica em ser a ciência (tipicamente a ciência natural e/ou empírica) indicada para substituir tudo a que a religião propõe-se. Comedimento é uma virtude rara (e particularmente presente em Charles Darwin). Sua falta leva a deslizes e exageros. Talvez exagero não seja o termo mais correto, mas antes, aquela tentação a ver apenas pregos quando se superestima o valor de um martelo. Escolhi esse artigo por 2 motivos; primeiro, porque ele erra feio o alvo em sua intenção original; e segundo, porque ali está endossada essa tentação de aplicar o Darwinismo onde Darwin mesmo foi, no mínimo, tremendamente cuidadoso, e que hoje desbrocha na forma da Psicologia Evolucionista. Esse artigo, por estar mais para uma crônica, obriga o leitor a derivar as intenções ou objetivos do autor ao longo do texto. Mas em qualquer caso, essas intenções são claras. Uma delas – e que me parece ser a principal ou mesmo única – está em explicar comportamentos morais tendo por base a teoria evolucionista, em substituição à suposta explicação religiosa. E já aqui há dois graves erros: a religião não tem como objetivo explicar comportamentos morais, nem a moral, enquanto área de investigação, preocupa-se com esse tipo de explicação. O segundo problema do artigo nem é tanto do artigo em si, mas da própria Psocologia Evolucionista, caso ela pretenda tratar da moral. Mas o artigo, ao assumir essa bandeira, erra novamente. Para sustentar isso, reproduzo alguns trechos para sustentar o que eu estou criticando, e este abaixo diz respeito ao errar o alvo:
Em outras palavras: a própria mentalidade religiosa, na forma como age a fim de favorecer o desenvolvimento do amor fraterno, revela a mente humana esculpida através dos tempos pela seleção natural, bem escondidinha por trás do véu negro da moralidade cristã. E, para quem ainda não entendeu a questão, o fato é que Deus não tem nada a ver com os nossos louváveis atos de generosidade e compaixão de uns para com os outros!
A intenção em refutar a moral religiosa, nesse caso, parece ter-se esquecido do que significa Moral. Moral ou Ética, que de fato são sinônimos, dizem respeito a como devemos (friso devemos) viver. A noção de dever fazer está calcada em algo mais fundamental, assume que quem age por dever tem consciência de que assim o faz. Claro, isso está posto em termos muito gerais, mas fundamentalmente significa que o sujeito, diante de alguma situação desse tipo, deve decidir conscientemente sobre seus atos. E a moral religiosa, por mais que seja o pior caminho para isso, fala exatamente sobre isso: como devemos viver.
Só que o parágrafo acima fala de algo muito diferente e em relação ao qual a moral – religiosa ou não – sequer preocupa-se. É bom lembrar que a moral religiosa é marcadamente escatológica e calcada na noção de pecado. Por trás disso está justamente o contrário do que é afirmado no artigo: deus não nos fez altruístas. Nem a priori bons ou maus. Ou seja, a religião não afirma que nós sejamos naturalmente altruísas, mas antes, que nós devemos ser altruístas. A religião não diz que nós somos altruístas porque deus assim nos fez. Ela diz que nós devemos ser altruístas porque deus assim indica (ou ordena), e isso pressupõe que nós podemos errar, quando então seremos punidos. Se somos naturalmente ou não, isso é irrelevante. E qualquer crítica à moral religiosa deve ser feita tendo isso como foco. Tendo como foco todo o arcabouço religioso no que diz respeito àquilo que devemos ou não fazer e em suas justificativas para tais atitudes. Fora disso, simplesmente não se estará falando de moral, muito menos de moral religiosa. Essa intenção no artigo erra o alvo, aliás, sequer acerta a parede: é oferecida uma explicação onde nenhuma explicação é pedida.
Esse erro soa bastante caricato quando é usado como um argumento anti-religioso. É uma espécie de caso particular, um tanto quanto tosco, de um erro maior, digamos. Esse erro maior a que eu me refiro é uma suposta tentativa de usar a Psicologia Evolucionista como argumento moral. Digo suposta porque a Psicologia Evolucionista em si não necessariamente tem esse objetivo. Mas a tentação em fazê-lo parece ser grande. Passo então a falar sobre esse erro maior.
O artigo cita alguns expoentes contemporâneos do que se conhece por Psicologia Evolucionista, como Hamilton e Pinker. Hamilton introduziu a noção de kin selection, traduzida no criticado artigo por seleção de parentesco. Já Pinker, muito conhecido pelo Tábula Rasa, defende uma posição que poderia ser assim livremente definida: se a influência puramente cultural em nossa formação for 0, e se for 10 a influência genética nessa formação, Pinker assume 9. Há mais autores que embarcam nessa corrente, sendo Herbert Spencer talvez o pioneiro em tentar aplicar o Darwinismo a questões morais. Mas não quero me deter em nenhum em particular, mas à idéia, e por isso volto ao artigo ora sob crucifixação. O trecho a seguir ilustra esse raciocínio:
Ao que tudo indica, nosso altruísmo, nossa compaixão, dentre outros sentimentos e atitudes de que somos capazes uns para com os outros, surgiram todos a partir da evolução de características que, por um lado, por meio do auto-sacrifício de um em favor de seus parentes, possibilitaram o sucesso reprodutivo genético dos grupos animais que assim fizeram e fazem, e o insucesso e a extinção dos que não o fizeram (basta ver a abundância de animais sociais em relação a animais solitários), enquanto que, por outro lado, somando-se a isso, desenvolvia-se em nós a estratégia interesseira do altruísmo recíproco (…).
Pois bem… O altruísmo e a compaixão para com pessoas que encontramos uma única vez (ou mesmo aquelas cujas tragédias pessoais apenas vemos na televisão), que logicamente não vão poder retribuir qualquer gesto nosso no futuro, pode ainda assim funcionar como um comportamento geneticamente programado de auto-persuasão visando a convencer o próprio altruísta de sua bondade, o que tornaria mais eficaz sua atitude, no sentido de convencer socialmente os outros da mesma coisa. O autoengano, como um mecanismo psicológico capaz de nos convencer de nossa bondade, de nos fazer experimentar verdadeira satisfação num ato de caridade praticada para com qualquer outro elemento do grupo humano, é uma adaptação evolutiva complexa, mas surge como uma hipótese um tanto plausível, que vem sendo defendida por alguns especialistas no campo da Psicologia Evolucionista.
Aproximadamente 100 anos antes de Darwin publicar A Origem das Espécies, David Hume, talvez o mais glorioso ateu que já existiu, identificou, em Tratise of the Human Nature, essa falácia naturalística, que consiste em derivar normatizações de fatos (ainda que Hume estivesse referindo-se à um aspecto da justificativa moral religiosa que não vem ao caso agora). Em outras palavras, a falácia consiste em confundir ser com dever ser. Da constatação de algo é de uma determinada maneira, isso não implica em que esse algo deva ser assim. Da constatação de que a evolução tenha nos fornecido o altruísmo como característica, isso nada diz sobre ser o altruísmo algo que devemos seguir ou praticar. Mas isso é apenas uma das críticas que podem ser oferecidas à interpretação da Psicologia Evolucionista, ainda que, em se tratando da Moral, essa seja a mais contundente. Possíveis explicações de natureza evolucionista para comportamentos são tão relevantes à moral quanto explicações sobre o pescoço das girafas.
É interessante também perceber onde esse tipo de racionalização pode levar. Independentemente de a Psicologia Evolucionista explicar tanto o altruísmo como o estupro, a perspectiva adotada assume uma espécie de tropismo universal como pano de fundo. Tem-se a impressão de que todos os atos, ainda que imediatamente motivados por crenças e desejos, tem como justificativa algo mais fundamental e inconsciente, alheio à vontade do sujeito – humano ou não – que age. Esse tema mereceria mais aprofundamento, e quem tiver interesse em ler algo sobre isso, sugiro Created From Animals – The Moral Implications From Darwinism, de James Rachels[3], que não é cientista nem psicólogo, é claro.
O Darwinismo tem implicações morais, e eu vou, num próximo post, falar sobre isso tendo por base o livro acima citado. E que, é claro, são bem diferentes do que essa interpretação apressada dos resultados da Psicologia Evolucionista leva a crer, como tão bem caricaturizada no artigo que eu critiquei nesse post. Nesse sentido, se a Psicologia Evoluvionista tem alguma pretensão quanto a contribuir com a moral, então ela ainda não começou a falar sobre o assunto.
[]s,
Nypoa[1] De forma simplificada: idéia de que tudo o que existe carrega um propósito ou fim.
[3] RACHELS, J. Created from Animals – The Moral Implications of Darwinism: Oxford, 1990. Oxford University Press Inc.
Um comentário:
Eu gostei sim Professor!!! É por aí mesmo!!! E agora eu to vendo que tenho um longo caminho pela frente!!! rsrsr Obrigado!!!
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