7.5.11

QUADRINHOS, PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE: Símbolos e mitos estruturam o desenvolvimento psíquico e espiritual


original em: http://www.psicolatina.org/Cuatro/quadrinhos.html


QUADRINHOS, PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE: Símbolos e mitos estruturam o desenvolvimento psíquico e espiritual

Cristina Levine Martins Xavier


   


Resumo

Este artigo tem como proposta fazer um estudo sobre a linguagem das histórias em quadrinhos através de uma análise transdiciplinar entre os campos da psicologia, da comunicação e das ciências da religião. Pesquisas mais atuais sobre as histórias em quadrinhos vêm revelando diversos atributos da linguagem quadrinhística que podem contribuir para o desenvolvimento humano em sua dimensão psicológica e espiritual. As estruturas arquetípicas presentes na linguagem mítica e simbólica dos quadrinhos possuem uma função mediadora entre a consciência do leitor e seu universo interior. Deste modo, promovem não somente a elaboração de conflitos mas também podem auxiliar o leitor a resgatar um sentido espiritual mais profundo para a sua existência.

As revistas em quadrinhos, ou HQs, vêm sendo utilizadas há muito tempo como recurso pedagógico e educacional, no entanto, pesquisas mais atuais no campo psicológico vêm revelando também outros atributos da linguagem quadrinhística muito vantajosos para o desenvolvimento humano em sua dimensão psicológica e espiritual, estendendo-se tanto ao público jovem como adulto. As estruturas arquetípicas que permeiam a linguagem simbólica do universo dos quadrinhos possuem uma função mediadora entre a consciência do leitor e seu inconsciente, promovendo assim, além da elaboração de conflitos emocionais, o resgate de um sentido espiritual mais profundo para sua existência.

Consultamos o especialista em histórias em quadrinhos, Waldomiro Vergueiro, professor na ECA-USP e organizador do livro “Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula” para desenvolver este breve estudo e assim fornecer uma visão transdisciplinar sobre quadrinhos através do diálogo entre os campos da psicologia, da comunicação e das ciências da religião.

As histórias em quadrinhos sempre exerceram grande fascínio tanto para o público infanto-juvenil como para o adulto. Desde que a revista em quadrinhos se tornou um produto industrializado de comunicação de massa no início da década de 1920 nos EUA, seu poder de penetração e comunicação se tornou cada vez mais acessível ao público, oferecendo diversos gêneros e estilos, como, por exemplo, os heróis em quadrinhos, os mangás japoneses, os fanzines e as graphic novels de diferentes tipos.

Na década de 1950, seu poder de apaixonar e seduzir o leitor chegou a causar mal-entendidos, difamações e perseguições que quase a condenou a uma categoria marginal, sendo considerada um produto perigoso e pernicioso para a educação dos adolescentes norte-americanos. Acreditava-se que a HQ pudesse prejudicar os jovens das mais variadas e inventivas maneiras desde incitar comportamentos violentos, incentivar práticas homossexuais, ou provocar atrasos no desenvolvimento intelectual pois os desenhos levariam à preguiça mental!

Mas, como nos diz Moacy Cirne “a arte que não sabe seduzir não leva a paixão, não leva a reflexão”, assim os quadrinhos acabaram sobrevivendo a todos estes preconceitos e chegaram às salas de aula e às pesquisas na área acadêmica do mundo inteiro. Como qualquer outro meio artístico, as HQs não fogem a regra de que são necessários critérios e discernimento tanto para adequá-las às diferentes faixas etárias como para serem devidamente apreciadas, pois a qualidade de seu conteúdo e de seu valor estético pode variar muito, indo do “lixo” meramente massificante até as grandes obras primas, como, por exemplo, as já canônicas Watchmen de Alan Moore, The Spirit de Will Eisner, Valentina de Guido Crepax, Asterix de Goscinny & Uderzo, Corto Maltese de Hugo Pratt, Sin City de Frank Miller, atualmente Spawn de Todd MacFarlane, e muitos outros.

Do mesmo modo como os contos são considerados como sendo de valor inestimável para a vida psíquica da criança, os quadrinhos oferecem através de seu rico, criativo e versátil mundo do imaginário uma ampla gama de recursos pedagógicos e psicológicos, reguladores do funcionamento psíquico e, em alguns casos, como na categoria de heróis em quadrinhos, podemos encontrar elementos potencialmente estruturantes de uma inteligência espiritual ou religiosa.
As origens das histórias em quadrinhos

Afinal, se fizermos uma breve recapitulação das origens da linguagem escrita, podemos facilmente constatar que o elemento mais importante e básico dos quadrinhos - a imagem gráfica - já estava presente desde os desenhos rupestres das cavernas. Nestes primórdios da história da humanidade, o homem se esforçava por estabelecer um registro, ou seja, uma memória de suas aventuras para as gerações futuras e também acreditava poder interferir “magicamente” no ritual da caça.

Estas primeiras expressões iconográficas apontavam assim para o despertar de um sentido estético e de comportamentos rituais com um forte componente simbólico que conduziriam posteriormente a progressivas estilizações e abstrações tais como: a escrita ideográfica, o pictograma chinês, a escrita cuneiforme, os hieróglifos egípcios. Estas que culminariam no alfabeto fonético grego o qual, com a união de consoantes e vogais, elevou ao nível infinito as possibilidades de transmissão de mensagens entre os homens.

Além disso, foram encontrados no Egito e Mesopotâmia, e nas culturas pré-colombianas, especialmente a Maia, exemplos de arte seqüencial próximos em muitos aspectos da moderna linguagem dos quadrinhos pois contam uma história por intermédio da combinação da linguagem escrita com a seqüência de imagens.

É inegável portanto, o papel fundamental da expressão iconográfica para o desenvolvimento das culturas e civilizações em todos os seus aspectos relevantes: artísticos, religiosos, científicos, políticos, econômicos e sociais. Este fundamento histórico e primordial da linguagem iconográfica é uma das razões que explicam o sucesso que os quadrinhos fazem até hoje, atingindo todas as idades e classes sociais.
A função psicológica do corte gráfico

O fator temporalidade nos quadrinhos é outra característica que se mostra reveladora em vários níveis para compreendermos a popularidade das HQs. Em primeiro lugar, os quadrinhos propiciam uma experiência que podemos qualificar de iniciática pois coloca o leitor em contato com o mito vivo presentificado em seu próprio cotidiano. O corte gráfico que separa a seqüência de imagens é também um corte espacio-temporal. Este espaço-tempo entre uma imagem e outra é preenchido pela imaginação do leitor no ato da leitura. Deste modo, o tempo da história em quadrinhos é o tempo presente. O tempo real dos quadrinhos é similar, neste sentido, ao tempo sagrado que é considerado como um tempo circular e reversível, pois pode ser indefinidamente rememorado e resgatado para ser celebrado e atualizado nos rituais.

O leitor vivencia uma situação semelhante aos ritos sagrados pois ele sai do tempo profano, cronológico e linear de seu cotidiano e penetra num tempo desconhecido e imaginário como o do tempo sagrado do mito, o qual é um tempo repetitivo que fixa um evento para determinada memória coletiva. A força do tempo sagrado está na sua qualidade de ser simultaneamente reversível e eterno, pois fala de um tempo glorioso onde algo foi criado por forças sobrenaturais, um ser que não existia passa a existir. Em termos psicológicos, representa uma fonte misteriosa e inesgotável - o inconsciente - de saber e autoconhecimento. Atualiza-se assim, a cada passo da narrativa, o que Mircea Eliade designa de "illo tempore", isto é, o tempo primordial aonde tudo veio à existência.

Segundo Umberto Eco, em sua famosa análise “O Mito do Superman”, os heróis das HQs, assim como os mitos, possuem elementos dinâmicos em sua narrativa que vão sendo reformulados e renovados semanalmente ou mensalmente, mas, paradoxalmente, possuem padronizações e referenciais fixos que permitem que o herói e certos aspectos de seu contexto narrativo sejam sempre reconhecidos e recuperados. O tempo sagrado do mito, assim como o “tempo real” dos quadrinhos, não é o tempo linear e progressivo, mas o tempo de “conexões”, do aqui e agora, correspondente, em certo sentido ao imediatismo do presente que encontramos no mundo virtual da internet.

Em segundo lugar, retomando a peculiaridade do corte gráfico que citamos acima, ele aponta também para o fato de os quadrinhos conferirem a cada leitor um espaço-tempo de liberdade para preenchê-lo de acordo com sua imaginação, isto é, sua subjetividade. Esta mesma possibilidade se configura de modo mais limitado na linguagem cinematográfica pois, segundo Moacy Cirne, nesta última o corte é uma possibilidade estética, enquanto que na HQ é uma exigência semiótica. Os fotogramas do filme não são visualizados pelo espectador. No caso da HQ, sem o corte não existem quadrinhos. Além disso, no cinema estamos muito mais presos ao tempo determinado pela projeção do filme, o que não acontece com o tempo da leitura nos quadrinhos, que é determinado também pelo próprio leitor.

Esta interação que ocorre entre o receptor e a narrativa transforma o leitor em um co-autor da história, uma vez que preenche, com sua imaginação os fatos não narrados graficamente. Isto significa que sua criatividade está sendo constantemente estimulada de um modo mais intenso e ativo do que pelo cinema ou pela TV. O fato de ter mais imagens do que texto não diminui seu valor e eficácia educacional. Apenas a diferencia pela forma como a mensagem é transmitida. A união texto/imagem pode ser, conforme os objetivos e necessidades do pedagogo ou do artista, uma vantagem na medida em que oferece uma ampla gama de recursos semióticos que podem, do ponto de vista do receptor, facilitar seu processo de desenvolvimento cognitivo por um lado, e de outro, pode desenvolver e aguçar sua sensibilidade e inteligência artística.

Além disso, este aspecto ativo de co-autoria que ocorre na leitura da HQ pode favorecer, assim também como acontece em outras linguagens artísticas, o processo de desenvolvimento de uma personalidade mais saudável na medida que isso acontece dentro dos limites semânticos colocados pelo “receptáculo” espacio-temporal do corte. É, em parte, através deste receptáculo, deste “cálice”, cuja contradição foi cantada de forma sublime por Chico Buarque, que vai sendo projetada, “alquimizada” e construída uma outra história em paralelo - aquela do sujeito e sua subjetividade. Curiosamente, o corte gráfico é chamado também de “calha”. A calha sugere metaforicamente a idéia de que a libido, ou energia vital, é “canalizada e escoada” durante a leitura, evitando que ela vaze no lugar “errado” ou em quantidades inadequadas como, por exemplo, no caso de comportamentos violentos ou autodestrutivos.

As narrativas, as imagens, os mitos, os símbolos, enfim, a linguagem da HQ vista em seu conjunto permite que o indivíduo encontre múltiplas possibilidades de simbolização de suas pulsões e afetos, contribuindo, deste modo, na elaboração dos conflitos relacionados ao seu universo mental, espiritual, emocional e corporal.
Quadrinhos e individuação

Existem ainda aspectos igualmente relevantes que devem ser considerados para uma compreensão mais abrangente e profunda do poder simbólico contido no universo dos quadrinhos e dos possíveis benefícios que podem ser obtidos para a saúde mental do ser humano. Alguns fatores estão presentes em qualquer revista em quadrinhos, outros são mais específicos a certos gêneros. Como o mercado de HQs é muito vasto, enfocaremos os aspectos mais importantes que foram levantados na pesquisa sobre o herói em quadrinhos Spawn, aspectos estes que, em certa medida, podem ser aplicados aos outros heróis em quadrinhos.

O processo de desenvolvimento e amadurecimento de uma personalidade diferenciada e singular foi chamado por C. G. Jung de individuação. O processo de individuação é metaforicamente representado pela jornada mítica do herói. O herói representa o ego, o “eu”, ou a consciência, e suas aventuras e desafios representam a experiências necessárias para que ele descubra quem é, qual é a sua missão ou vocação, quais são seus talentos e também suas limitações. Estas experiências necessárias e inevitáveis que marcam a jornada do herói são designadas como arquetípicas ou primordiais: nascimento, morte, infância, adolescência, maturidade, velhice, maternidade, paternidade, etc. Elas fazem parte do repertório coletivo das experiências básicas e arcaicas do ser humano e por isso são encontradas nos mitos e lendas de todas as culturas e em todas as épocas.

As experiências de vida são arquetípicas e iniciáticas na medida em que ativam o desenvolvimento e evolução destas estruturas psíquicas do ser humano. São oportunidades de crescimento psicológico e espiritual.

A pesquisa sobre o herói em quadrinhos “Spawn, O Soldado do Inferno” [1] nos colocou diante de diversas evidências que indicam que, para o leitor assíduo da revista, ele poderia se configurar como forma de rito iniciático ou rito de passagem que colocaria, caso o leitor seja um adolescente, em contato com os conteúdos míticos e arquetípicos relacionados ao desenvolvimento da personalidade, auxiliando-o no sentido de elaborar criativamente os conflitos que marcam a difícil transição da infância para a adolescência e desta para a fase adulta.

Segundo a psicologia junguiana, a falta de ritos sagrados de passagem no mundo moderno é uma das grandes causas das crises e dificuldades típicas da adolescência agravadas pelas instabilidades no campo social, econômico e político. A modernidade trouxe consigo uma progressiva e inevitável fragmentação mítico-religiosa para a sociedade ocidental, a chamada era da secularização.

Sintomaticamente e compensatoriamente a este movimento de separação entre o campo do sagrado e o campo sócio-político e econômico, surge a psicologia como resposta e alternativa científica para auxiliar o indivíduo a lidar com os desafios, desencantos e vazios deixados pela perda de seus antigos pilares míticos. Os sonhos e seus simbolismos, os distúrbios de comportamento, os mecanismos de defesa, os sintomas psicossomáticos, enfim, as diversas manifestações da dinâmica da psykhe (alma, em grego) se revelam como uma porta ou ponte para os mistérios do mundo interior, do inconsciente pessoal ao coletivo, em suma, uma forma de mitologia pessoal.

Esta progressiva secularização e fragmentação religiosa que se deu na sociedade ocidental nos últimos séculos, também contribuíram para a emergência de uma rica e variada mitologia relacionada aos super-heróis e anti-heróis na literatura, no cinema, no teatro e marcadamente nos quadrinhos.

Se observarmos a evolução dos heróis em quadrinhos, verificaremos que foram se tornando ao longo das décadas cada vez mais complexos, densos e ambíguos refletindo esta necessidade arquetípica humana de projetar por meio de símbolos e mitos vivos seus conteúdos psicológicos e culturais. Representam claramente as profundas mudanças que se fizeram sentir no campo da moral e da ética.

Apesar de estarem sujeitos a diversos tipos de padronização industrial, influências ideológicas e mercadológicas, os quadrinhos representam hoje um espaço democrático, criativo, polissêmico, híbrido, para canalizar as fantasias, desejos, preconceitos, temores, questionamentos e críticas presentes no cotidiano do homem pós-moderno. As HQs podem assim representar, se utilizadas de modo adequado, um excelente suporte para as projeções tanto da consciência coletiva como do inconsciente coletivo auxiliando o ser humano em sua caminhada evolutiva para uma maior maturidade bio-psico-social.

Isto nos leva a concluir que a HQ, ou a 9a arte, possui méritos que não podem ser comparados a nenhuma outra modalidade de expressão artística. Embora ela seja influenciada e possua elementos de outras artes e mídias (e vice-versa), ela faz uma síntese muito própria destas influências e elementos que a tornam uma arte singular com sua própria e multifacetada personalidade.
Bibliografia:
CIRNE, Moacy. Quadrinhos, Sedução e Paixão, Vozes, RJ, 2000.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados, Perspectivas, SP, 2004.
ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito, Edições 70, Lisboa, 1989.
VERGUEIRO, Valdomiro (Org.). Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula, Contexto, SP, 2004.
XAVIER, Cristina L. M. Spawn, O Soldado do Inferno - Mito e religiosidade nos Quadrinhos, Difusão, SP, 2004. Site do livro: http://www.spawn.art.br/
Notas
1. Esta pesquisa de mestrado realizada no programa de Ciências da Religião da PUC/SP em 2003, foi publicada sob o título “Spawn, O Soldado do Inferno, Mito e religiosidade nos quadrinhos”. Vide bibliografia.

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