R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.7, n.2, p. 316-342, jul/dez. 2010
por
Isabela Lara Oliveira
Doutora em História, mestrado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB),
professora adjunta da Faculdade de Comunicação Social da Universidade de Brasilia (UnB),
Pesquisadora correspondente do NEIP - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos e
membro da ABESUSP - Associação Brasileira de Estudos de Substâncias Psicoativas. E-mail:
isabelalara@gmail.com
RESUMO:
A Ayahuasca é um chá com propriedades psicoativas, utilizado milenarmente pela população nativa amazônica. A partir do início do século XX, a população não índia passou a ter contato com a bebida e formaram-se novos contextos de utilização desse chá, além de novos significados para ele. Entre esses contextos encontra-se a religião Santo Daime, uma religião brasileira, cristã, de cultura essencialmente oral. O presente artigo analisa o processo de ressignificação da Ayahuasca nessa religião entre as décadas de 30 e 60. A hipótese que se coloca é que a ressignificação da Ayahuasca no contexto da religião se insere no processo dialético mais amplo de construção social de significados que fundamenta a constituição da religião. Como metodologia foi utilizada a análise do conteúdo das memórias e das histórias orais presentes na religião. A partir dessa análise, observou-se que o processo de ressignificação da Ayahuasca é um evento contínuo, inserido no processo dialético de formação da rel igião; que inicialmente a bebida era percebida pelos seguidores como uma droga e que foi progressivamente ganhando o significado de sacramento cristão. No presente, delineia-se a construção de outro significado para a bebida: patrimônio histórico e cultural da nação brasileira.
Palavras-chave: Santo Daime. Ayahuasca. Psicoativos. Ressignificação religiosa.
História.
INTRODUÇÃO
O presente artigo analisa como se deu o processo de ressignificação da Ayahuasca no contexto de formação da religião Santo Daime entre as décadas de 1930 e 1960 e aponta como o significado da bebida se apresenta atualmente para seus seguidores. Os resultados aqui apresentados, assim como todos os depoimentos utilizados, fazem parte da pesquisa realizada para elaboração da Tesede Doutorado Santo Daime: um sacramento vivo, uma religião em formação, defendida por mim em 2007 no Programa de Pós-graduação em História da 318
A hipótese que se coloca é que a ressignificação da Ayahuasca no contexto da religião se insere no processo dialético mais amplo de construção social de significados, que fundamenta a constituição da religião como um todo. Tendo em vista o fato de o Santo Daime ser um grupo de cultura essencialmente oral, foi utilizada, como metodologia para compreender a construção do significado atual da bebida, a análise do conteúdo das memórias e das histórias orais presentes na religião. Como os registros orais têm características próprias, diferentes da linguagem escrita, as singularidades presentes nas falas de cada narrador foram mantidas, buscando, assim, fazer com que a recriação textual se aproximasse ao máximo da linguagem oral dos entrevistados. Como lembra o historiador Paul Thompson (1992, p. 137) “a evidência oral, transformando os „objetos‟ de estudo em „sujeitos', contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira”. O critério primordial da escolha dos narradores foi a sua antiguidade na religião e, especialmente, sua convivência com o fundador da religião, o Sr. Raimundo Irineu Serra, na cidade de Rio Branco.
Dessa maneira, o presente artigo trata de uma análise investigativa pelo viés das comunidades onde esse processo de ressignificação aconteceu. Por meio dessa metodologia, o que se busca é compreender como se deu esse processo de ressignificação a partir do entendimento daqueles que tiveram a oportunidade de vivenciar a constituição da religião.
1 O CONTEXTO DA FLORESTA
1.1 A Ayahuasca
A Ayahuasca é um chá com propriedades psicoativas que tem sido utilizado milenarmente (MCKENNA, 2004) pelas populações nativas da região amazônica brasileira e andina para diferentes finalidades, tais como: diagnóstico e cura de doenças; adivinhação; caçadas; preparação para guerra; práticas xamânicas e curandeirismo. (MACRAE, 1992). Em linhas gerais, a Ayahuasca é obtida por meio da decocção do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria viridis. Entretanto, outras plantas com propriedades químicas semelhantes são utilizadas na formação da bebida, dependendo da cultura do grupo usuário. Segundo o pesquisador Rafael Guimarães dos Santos (2006):
Ayahuasca é um termo quéchua (ou quíchua), língua falada nos altiplanos andinos (DOBKIN DE RIOS, 1972), cuja etimologia é: Aya – persona, alma, espíritu, muerto; Waska – cuerda, enredadera, parra, liana, que poderia ser entendida, por exemplo, como “trepadeira das almas”. (LUNA, 1986; GOULART, 2005 apud SANTOS, 2006, p.19).
Ao longo da região amazônica, a bebida é conhecida por mais de 40 nomes, sendo utilizada por mais de 70 grupos indígenas diferentes, espalhados por diversos países – Brasil, Colômbia, Peru, Venezuela, Bolívia e Equador (LUNA, 1986) –, além de ser também consumida pela população nativa local. Apesar de ser amplamente conhecida na região, foi apenas a partir do final do século XIX e do início do século XX que a bebida começou a ser consumida nos centros urbanos.
Tal se deu, especialmente no caso brasileiro, por meio da formação de algumas religiões que passaram a fazer uso ritualizado da Ayahuasca nas cidades de Rio Branco (AC) e Porto Velho (RO), entre as quais destaco o Santo Daime, a mais antiga das religiões que fazem o consumo da Ayahuasca no Brasil, entre as quais figuram a União do Vegetal e a Barquinha. Nesse processo de expansão, além da Ayahuasca ter sido rebatizada como Daime e Vegetal, a bebida e seu consumo foram ressignificados, passando,especialmente no caso da religião Santo Daime, a ser considerada por seus adeptos um sacramento eucarístico cristão. Essa ressignificação fica evidente, por exemplo, nas palavras da Sra. Altina Alves Serra, antiga seguidora da religião, que vive na cidade de Rio Branco (AC): “Comunhão pra mim é tomar o Daime, o Santo Daime”.
Tal se deu, especialmente no caso brasileiro, por meio da formação de algumas religiões que passaram a fazer uso ritualizado da Ayahuasca nas cidades de Rio Branco (AC) e Porto Velho (RO), entre as quais destaco o Santo Daime, a mais antiga das religiões que fazem o consumo da Ayahuasca no Brasil, entre as quais figuram a União do Vegetal e a Barquinha. Nesse processo de expansão, além da Ayahuasca ter sido rebatizada como Daime e Vegetal, a bebida e seu consumo foram ressignificados, passando,especialmente no caso da religião Santo Daime, a ser considerada por seus adeptos um sacramento eucarístico cristão. Essa ressignificação fica evidente, por exemplo, nas palavras da Sra. Altina Alves Serra, antiga seguidora da religião, que vive na cidade de Rio Branco (AC): “Comunhão pra mim é tomar o Daime, o Santo Daime”.
http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/13472
um vídeo com os adeptos do santo daime pode ser visto abaixo
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