14.7.11

A filosofia chinesa

Postado por Humberto Schubert Coelho no blog parceiro http://filosofiaespiritismo.blogspot.com

A China é um continente a parte, com população, tamanho e complexidade cultural mais que suficiente para se igualar a Europa, ao Oriente Médio e a Índia no que se refere ao seu papel no desenvolvimento da civilização. Englobando a Coréia e o Japão, seus filhos espirituais, e estendendo sua influencia sobre o Vietnã, o Camboja e o Laos, com menor presença sobre os demais países do Sudeste Asiático, compõe o grupo cultural majoritário ao lado do conjunto que denominamos “Ocidente”.

A recente ascensão econômica e tecnológica da China e de todo o Extremo Oriente forçaram a mentalidade ocidental para fora de sua área de conforto, que alcança até o pensamento indiano do qual proveio a cultura e o povo europeu, de modo que o papel dos povos orientais no progresso técnico e no refinamento da civilização tornou-se agora, imprevisível e extraordinariamente, uma realidade para nós.

As dificuldades de tradução e compreensão permanecem, no entanto, imensas e quase insuperáveis. Enquanto a filosofia indiana foi escrita em sânscrito, a mãe de todas as línguas européias, e está baseada nos adjetivos e verbos, como a filosofia européia, o pensamento chinês está radicado na sua língua simbólica. As filosofias indo-européias possuem dois questionamentos básicos. O primeiro deles é se os adjetivos pertencem intrinsecamente ao sujeito, como sua essência ou se são acidentes. O segundo deles está relacionado principalmente com o verbo “ser” e suas variantes (tornar-se, poder ser, permanecer, etc). Isto é a base da lógica e da metafísica ocidental e indiana, a saber, a análise de afirmações com a finalidade de confirmar se algo é aquilo que se afirma sobre ele, se a essência ou o ser de alguma coisa permanece com as suas mudanças e transformações. A língua chinesa não possui nem os mecanismos complexos de predicação nem o verbo “ser”, impedindo completamente o desenvolvimento da lógica e da metafísica. A gramática praticamente não existe, e faltam-lhe elementos que qualquer linguista ocidental consideraria vital para a expressão dos pensamentos mais básicos. Ainda assim, a China desenvolveu uma filosofia toda própria que assombra e fascina os que dela se aproximam.

Para começar a tratar da filosofia chinesa é preciso ter em mente esta diferença radical da língua escrita e falada, especialmente da primeira. Os chineses não têm como desenvolver argumentos lógicos a partir de sua língua, por isso refinaram a expressão de ideias inteiras por meio de imagens. Seus argumentos são representativos, ao invés de demonstrativos. Imagine-se, por exemplo, expressando a ideia de que a casa de seus pais era bonita, e que sua mãe foi também muito bonita na juventude. Você seria obrigado a dizer: “casa de meus pais bonita”, deixando o interlocutor na dúvida se ela ainda é ou se foi apenas no passado. Provavelmente você deveria acrescentar alguma informação para deixar claro que a casa não existe mais, ou está feia agora. O mesmo valeria para sua mãe, você teria que dizer: “Minha mãe jovem bonita”. O pensamento chinês não é poético e singelo por opção. Ele não tem outra alternativa.

Com isso a filosofia chinesa adaptou-se desde muito cedo às máximas e axiomas, buscando sempre a definição perfeita de ideias e coisas. A vantagem deste processo é permitir uma grande precisão e sobriedade no trato das questões. Não existe pensamento abstrato, ideias em si ou princípios metafísicos. Tudo é o que é e mesmo as coisas mais esotéricas são apresentadas como concretas. A desvantagem é a perda de dimensão crítica, pois as línguas indo-européias permitem com a sua especulação sobre o “ser” das coisas um questionamento quanto a sua realidade. Os chineses apresentam grande dificuldade em separar o que é real do que é possível ou hipotético, de modo que ou aceitam ideias mágicas e místicas como absolutamente concretas, ou como absolutamente falsas. Os inúmeros episódios da história da China mostram a guerra entre facções religiosas e céticas, num extremismo raro entre as classes intelectuais da Europa e da Índia. Enquanto os sábios ocidentais e indianos tem como certo o relativismo, um certo grau de dúvida e a convivência entre múltiplas hipóteses razoáveis, os sábios chineses estão em perpétua discordância quanto aos elementos mais básicos da civilização. Um outro reflexo desta menor capacidade crítica das línguas orientais é o conservadorismo. Se Confúcio estava certo não há porque rever o seu ensino. A doutrina é aprendida, não desenvolvida. Assim pensavam os próprios fundadores das escolas religiosas e filosóficas. Todos acreditavam estar reproduzindo o pensamento anterior, jamais inovando.

Os ideogramas possuem ainda uma particularidade digna de nota. Quase todos são montados a partir de outros mais simples. Os famosos termos Ying e Yang, por exemplo, podem ser formados por diversos ideogramas, mas um deles é particularmente sugestivo. O ideograma para Ying, que sozinho representa gelado e escuro, junto com o ideograma do sol formam o Yang. Esta simbologia é muito interessante, pois o Yang (princípio da luz e da ação) é formado a partir do seu oposto mais o sol. Desta forma o Yang representa também o “reflexo” do sol no elemento passivo que é o Ying. Os chineses adoram desdobrar os ideogramas ou comparar as suas formas entre si, e consideram os resultados destas combinações uma verdadeira investigação filosófica. Achar uma semelhança entre os símbolos para “Brasil” e “quente” não seria considerado uma coincidência para a maioria deles, mas uma revelação de que a natureza da língua esconde mistérios simbólicos.

Por estas linhas gerais se percebe que o pensamento chinês convive em paz com o dogmatismo. Isso não apenas propiciou o surgimento das superstições, ritualismo e mitos, como também abriu espaço para o comunismo, a superstição travestida de ciência social. Mas seria uma inconsequência bárbara supor que esta antiga e requintada civilização não possui compensações e contrapesos que a tornam em vários aspectos superior à nossa. O país do meio, como se autodefiniu por quase três mil anos, teve o seu primeiro grande código legal com Fo Hi, por volta de 3.500 antes de Cristo. Esta assombrosa data era considerada pelos chineses do século VI a.C como a Idade Antiga, enquanto o período iniciado por volta de 1200 a.C. seria a Idade Moderna, coincidindo com a fixação dos judeus na Palestina após a fuga do Egito e a guerra de Tróia.


A época que marcou definitivamente o pensamento chinês foi a decorrida entre os séculos VII e IV a.C, também em paralelo com idades de ouro da Índia e da Grécia. É impressionante imaginar que Buda e Patanjali na Índia, Tales, Pitágoras, Heráclito e Sócrates na Grécia e Confúcio e Lao-tsé na China dividiram o mesmo período. Até então a China era composta por uma grande diversidade de crenças e políticas mais ou menos uniformes. A religião era baseada em três princípios: a mitologia, responsável pela educação básica dos elementos da natureza e do caráter humano, geralmente com deuses ligados aos fenômenos celestes, aos ventos, ao sol e a lua; a ética, que era tanto um princípio político de respeito às leis quanto uma recomendação religiosa; e o culto aos antepassados.

Os sábios da era clássica trabalharam com todos estes conceitos, dividindo-se quase naturalmente por áreas de interesse. Lao-tsé, que conta como o maior mestre religioso da história chinesa, desenvolveu uma ética naturalista, racionalizou a natureza e organizou a religião segundo os princípios de uma união mística genérica com a natureza e os demais seres humanos. O taoísmo desenvolvido a partir dele conservou a doutrina da serenidade, da paciência e tolerância acima de todas as motivações terrenas.


Lao-Tsé.

Lao-tsé pregava a necessidade de afastamento da vida social e uma vida ascética e extremamente frugal, onde apenas as alegrias da paisagem bucólica e do autocultivo deveriam ocupar o espírito. Identificou o silencio como a técnica mais perfeita de meditação e instrução. Via a energia divina em todas as coisas, a harmonia completa, a beleza e a perfeição em todas as pessoas, objetos e fenômenos.



Confúcio opôs-se ao mestre por desejar uma filosofia mais terrena e mais de acordo com as necessidades do mundo político e social. Para isso deu absoluta importância ao conceito de justiça, baseado nas máximas de “não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem”, e “não aplicar aos subordinados regras que nós mesmos não gostaríamos de seguir”. Desinteressado das questões transcendentais, concentrou-se exclusivamente no comportamento humano. Não tinha pretensão de formar santos, como Lao-tsé. Almejava apenas a educação do cidadão comum de modo que cada indivíduo optasse livremente por converter-se em célula obediente e produtiva da sociedade. Confúcio foi sumamente realista, prudente e reto, exigindo metas simples e possíveis de serem atingidas pelas massas. Sua filosofia, segundo ele mesmo, só possuía a autoridade de seu próprio exemplo. Não reconhecia-se erudito dos textos antigos ou portador de uma mensagem revolucionária. Acreditava e pregava, ao contrário, ser apenas um seguidor fiel das tradições e leis, cujo único mérito era esforçar-se para honrar a educação recebida de seus pais e avós. Pragmático, dizia que a reforma do cidadão em homem honesto era a máxima felicidade que a civilização poderia oferecer, e o único recurso garantidor da paz, da prosperidade e da segurança.

Confúcio também foi, juntamente com os legalistas, o pai dos concursos públicos. Seus discípulos conseguiram aplicar a ideia em algumas províncias, o que se tornou para sempre uma das maiores conquistas da China.


Confúcio.

Os funcionários do governo de todas as nações eram até então escolhidos pelos soberanos e pela aristocracia. Com a ideia de concursos públicos baseados no mérito os chineses conseguiram estabelecer uma casta burocrática cuja competência era medida pelo conhecimento dos textos ao invés do agrado aos soberanos. Esta casta burocrática não apenas garantiu uma educação contínua e permanente na maior parte da China, pois os pais desejavam educar os seus filhos para ascensão social através dos concursos, como garantiu a estabilidade e a qualidade das leis contra o arbítrio e até a insanidade dos soberanos. Enquanto Roma via seus loucos imperadores perverterem as noções básicas de direito, sendo sucedida pelos selvagens regentes bárbaros da Idade Média, a China, embora submetida a autoridade absoluta de seus monarcas, preservou sempre uma culta elite administrativa a ditar altas e polidas normas de conduta.

A terceira força do pensamento chinês clássico é o legalismo, que sequer possui uma figura de destaque. Pode-se dizer até que o legalismo existiu desde sempre, como forma básica da cultura oriental, mas ele também experimentou grande desenvolvimento por volta dos séculos V e IV a.C. O legalismo prega basicamente a incapacidade do homem de promover a própria educação moral, de modo que as leis e o governo possuem um papel essencial na garantia da moralidade dos indivíduos. Por mais anti-liberal e alienígena que nos pareça esta ideia ela teve um papel muito importante na cultura chinesa, e não difere tanto do pragmatismo ocidental quanto às leis. Longe de ser um dogmatismo ou uma prescrição de passividade apenas, o legalismo tenta conscientizar os indivíduos de que a vida coletiva não pode ser organizada sem a abdicação de parte da liberdade dos cidadãos. Estes precisam se apagar em nome do Estado, ou a ordem não passará jamais de uma utopia. Por isso o legalismo prega que as leis devem ser seguidas não importa o quão erradas elas pareçam. A moral da consciência individual deve ser reprimida, pois os indivíduos discordam uns dos outros produzindo o caos. Somente a moral do governante é relevante, já que ela distingue na prática quais punições e recompensas estão em vigor.

Como uma reação natural ao tradicionalismo dos legalistas e de Confúcio, o sábio Mozi desenvolveu uma linha de pensamento que prioriza a moral individual. Mozi considerou hipócritas os conservadores e pragmáticos que almejavam a ordem social, e os acusou de perverterem a moral natural em favor do interesse político. Sua doutrina pregava então o amor universal a todas as criaturas, a busca da justiça e do bem a qualquer custo, mesmo que fosse necessário lutar contra o governo, os sacerdotes e a própria família. Apesar disto não tinha menos interesse pelas questões sociais do que seus contemporâneos. Ele acreditava que a bondade individual seria o melhor método de garantir a ordem e a paz, pois estas últimas seriam produzidas automaticamente. Ao invés disto, as escolas éticas concentradas nas leis e no respeito a tradição não seriam capazes de reformar o indivíduo, produzindo uma paz ilusória e temporária.


Mozi.

Este enfoque prático das filosofias chinesas facilitou a proliferação do budismo que chegou ao país em princípios do século IV. Mais tarde a China acomodou também o Islamismo e o Cristianismo, ambos com expressivo número de seguidores, embora conservando as suas formas mais ortodoxas e rígidas. Se por um lado o diálogo não é o forte da filosofia chinesa, originando esta multiplicidade de variações estanques e cristalizadas de tradicionalismo, é também verdade que o pensamento chinês vai fundo aos conceitos e produziu algumas das imagens mais poéticas da religião, alguns dos mandamentos mais veneráveis da moral e alguns dos princípios mais sóbrios da política de todos os tempos.

Quando Lao-tsé se deparou com a ideia de unidade da natureza, não foi através de um argumento lógico que ele no-la apresentou. Sua sabedoria foi formulada em duas linhas desprovidas sequer de um elemento de ligação, mas que compõem apesar disto um quadro completo:

Folhas caindo tocam-se umas as outras;
A chuva toca a chuva.

Deve interessar-nos uma profundidade poética e filosófica que independe de toda a estrutura que tomamos por imprescindível, a exemplo de como pode a mesma mente humana elaborar distintos caminhos que se completem rumo à verdade. Além disso são dignas de nota as semelhanças entre o pensamento padrão do Extremo Oriente e o Espiritismo. Desde o budismo, mas talvez antes são gerais os conceitos de reencarnação e carma. A noção de energia vital é incontestável em todas as nações sob a área de influencia chinesa, com destaque para o Japão onde a força vital é diretamente associada ao poder da vontade. É a partir desta energia bioplástica, o Chi ou Ki, que se originam os fenômenos paranormais. Acredita-se que os parentes interessam-se pelas suas famílias e continuam a protegê-las do além, crença esta que originou o culto aos mortos e entidades protetoras do lar. Os místicos orientais mais do que acreditam na possibilidade de comunicação com os mortos, eles a tem como amplamente comprovada pela experiência.

A par das diferenças de concepção, a experiência iguala de maneira impressionante as crenças de todas as civilizações.

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