14.7.11

Psicologia: a ciência da alma?

Segue uma visão da psicologia descrita pelo meu colega humberto schubert coelho, do blog parceiro http://filosofiaespiritismo.blogspot.com

Sua versão se apóia numa versão espiritualista da ciência psicológica que, mesmo não sendo unanimidade acadêmica, é muito bem elaborada

PS: como cético, devo dizer que não concordo com algumas alegações, especificametne aquelas atribuídas ao "espírito" Joanna de Angelis. Reconheco, contudo, a clareza e brilhantismo do texto 
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Embora a psicologia moderna seja uma ciência com método e objetivos próprios, sua fundamentação doutrinária requer ainda uma boa dose de filosofia, o que infelizmente só é admitido por uma parte dos grandes sistematizadores da psicologia. Toda doutrina, as ciências incluídas, pressupõem um ponto de partida filosófico que lhe define a validade. Nas ciências naturais este papel é desempenhado, geralmente, por premissas positivistas genéricas, ou, mais recentemente, pela filosofia da ciência enquanto disciplina específica. Já com as ciências humanas, por outro lado, pode-se observar uma discussão qualificada com a filosofia, mas ainda assim há distinções entre os pensadores que confessam esta herança, como Jung em relação a Kant e Goethe, e os que não a mencionam, como Freud em relação a Schopenhauer e outros românticos.

De qualquer modo interessa-nos sobremaneira a relação entre psicologia e filosofia, já que ambas se completam na descrição e análise da subjetividade humana. Uma predominantemente debruçada sobre a manifestação empírica da alma em sua economia vital, a outra mais orientada para a especulação sobre as estruturas invariáveis do espírito.

Quem primeiramente empreendeu uma unificação relevante destas abordagens foi o filósofo e médico estóico Posidônio (135 a.C. – 51 d. C.), cuja obra foi lamentavelmente perdida, restando dela apenas citações e fragmentos reunidos por outros autores. Mesmo que seu nome não tenha alcançado grande destaque no mundo antigo, sendo conhecido basicamente pelos estóicos e investigadores da natureza, seu impacto profundo sobre a medicina de Galeno e a filosofia de Cícero e Sêneca tornou populares as suas idéias centrais.


Posidônio

Posidônio se confrontou com os dois grandes psicólogos de sua época, Epicuro, representante das paixões: prazer e poder, e Crísipo, defensor da tese de que todas as ações humanas resumem deliberações racionais. Posidônio parecia chocado com o fato de ambos os grandes filósofos serem incapazes de entender o lado oposto da questão, e estabeleceu uma síntese em sua doutrina, na forma das três afinidades humanas, poder, prazer e razão. As primeiras corresponderiam ao aspecto animal da alma, a última ao aspecto espiritual e divino. Nas palavras do próprio Posidônio: Algumas pessoas equivocam-se ao pensar que aquilo que pertence aos poderes irracionais da alma, como seus fins naturais, são fins naturais sem qualificação; o que estes não apreendem é que prazer e poder em detrimento do próximo é a meta do aspecto animal da alma, enquanto a sabedoria, bem como tudo o que é bom e moral, são os fins do aspecto divino e racional.” [1]

Esta hierarquia, no entanto, implicava o governo da razão sobre as volições, não um desprezo destas últimas, sem as quais a vida perderia toda a sua concretude. O mérito de Posidônio está em não apenas reconhecer a existência das paixões, mas reconhecê-las como forças positivas (pois, para os estóicos, tudo o que é natural é correto e bom). Como em Platão ou Aristóteles, bem e mau, num sentido moral, não são categorias relacionadas às paixões, e sim à razão. As paixões podem ser boas ou más na ausência da razão, e são sempre boas na sua presença. Posidônio evoca a metáfora platônica da alma como uma biga puxada por dois cavalos, prazer e poder, e conduzida pelo cocheiro, a razão. Sem o condutor ela estaria desgovernada e perderia seu objetivo; sem os cavalos ela perderia sua força motriz, ficando inerte e inútil.

O ponto complexo desta dinâmica psicológica é o fato de que, para Posidônio, a razão tem uma influência mínima no estímulo ou repressão das paixões. Ela tem grande poder de compreensão, mas pouco poder para disciplinar a paixão. Desta forma, muitas vezes os cavalos tentam mudar a direção imposta pelo condutor, complicando a viagem.

Este conflito é provocado por dois motivos: o primeiro, correspondente ao erro de Crísipo, é desconsiderar a influência das paixões sobre a própria deliberação racional. A razão escolhe, mas é auxiliada na escolha pelos interesses semi-independentes das paixões. E o segundo corresponde ao erro de Epicuro em desconsiderar o poder da razão em eleger fins capazes de satisfazer as paixões. Se isso fosse verdade só restaria reprimir as paixões com um racionalismo artificial, ou entregar-se a elas; ou convento ou carnaval. Com isto Posidônio atingiu uma compreensão avançada da constituição psicológica humana e de seus desdobramentos na vida prática, percebendo que os elementos ou forças da mente são ao mesmo tempo distintos e comunicantes. Em outras palavras, a razão podia elaborar justificações para interesses das paixões, e as paixões poderiam ter “interesses espirituais”, educados pelo consórcio com a razão.


Para moralizar é preciso transformar a emoção tanto quanto a razão. Cada pessoa carrega em si todas as forças que nela geram conflitos e são responsáveis pelo bem ou mal, de modo que o indivíduo é responsável pelas emoções que deixa despertar em si ou descontrolar no contato com o estímulo externo. Se a emoção, por outro lado, estiver em contato íntimo com a inteligência, não será por mera argumentação que a alma se inclinará para o bom caminho, senão antes porque a inteligência soube falar à emoção em sua linguagem, despertando nela a consciência de que sua própria realização depende de tal ou qual fim. É inútil tentar agredir ou olvidar a emoção no esforço moralizador. O que se obterá com isso, repetimos é uma adesão artificial à lei moral, que termina com revolta contra esta lei imposta. Convento seguido de carnaval, se a razão reprimiu o prazer, ou pior, moralismo ditatorial, se a razão corrompeu a vontade de poder.
Um quadro simbólico e simplificado do comportamento humano poderia ter este formato.



O esquema dispensa maiores explicações. Há versões introvertidas e extrovertidas de cada disfunção. Culpa quando o intelecto quer abafar o prazer, mas não o logra, repressão quando é bem sucedido; moralismo quando se logra abafar a vontade de poder, vaidade quando a inteligência a estimula. E assim por diante.
Posidônio diz, segundo Galeno, que devemos silogisar da seguinte maneira: “Coisas que não dão a mente grandeza de espírito, confiança inabalável ou paz de espírito não são bens. Riqueza, saúde e semelhantes não produzem estas características mentais. Portanto não são bens.” ( E mais tarde Posidônio acrescenta que o que nos conduz a estas coisas é o acaso, e não há bem proveniente da arbitrariedade. O bem é sempre algo exercido, pois assim a sua realização depende exclusivamente de quem o persegue; as coisas casuais, por outro lado, são aquelas que não podemos realizar por nossa forca apenas, logo são exteriores.

Devemos votar-lhes apenas um interesse moderado despreocupado, já que não nos são nem inerentes, nem constantes. Tudo isso pode ser facilmente provado pela razão. Quão ridículo é aquele que persegue a riqueza ou a saúde sem os obter, e não percebe que a sua posse depende grandemente de sorte, destino e condições do ambiente. Quão igualmente ridículo não é aquele que possui riqueza e poder e se acha o único responsável pelo seu gozo, orgulhando-se de sua pretensa capacidade, até que um vento do destino tudo lhe arranca. Estes são inclusive piores do que os primeiros, porque enquanto fruem de bem-estar acham-se melhores que os demais. O homem racional não se deixa perturbar nem pelo orgulho, quando frui de conforto, nem pela lamentação, quando é dele privado. Se esforça por obter prazer e poder, mas sem desesperar-se ou acomodar-se por eles. Sabendo da casualidade das condições materiais, tenta espiritualizar sua busca por prazer e poder. Logo o seu prazer se torna o deleite da alma, e o poder se direciona do exterior para o interior, para o governo da própria vida.

Este pensamento teve enorme impacto sobre o estoicismo, modificando significativamente o seu tratamento da psicologia e espraiando-se daí para o cristianismo nascente. Perdeu, entretanto, sua riqueza de detalhes, na medida em que sua obra não pode ser conservada, o que logo extinguiu o interesse por um estudo aprofundado de suas teorias.
O mesmo esquema parece só ter surgido dois mil anos depois com a psicologia junguiana, que acomoda as distintas fontes de energia da alma, o prazer identificado por Freud e a vontade de poder identificada por Adler.[2] A este reconhecimento de uma dupla modulação da energia psíquica o sábio suíço acrescenta uma significativa síntese entre estas forças imanentes da alma e a razão, reconhecidamente através de Kant e de Goethe,[3] que lhe permitem elaborar o conceito de símbolo, onde a razão não está mais isolada, senão perfeitamente acomodada às necessidades e interesses anímicos.

Com excepcional sensibilidade para os marcos de fronteira entre as distintas partições da alma, sem, contudo, permitir que as diferenciações se traduzissem em uma insípida rigidez técnica, o psicólogo mais completo do século XX apresenta o quadro vivo da dinâmica psíquica, com ampla valorização das expressões religiosas e morais, que até então não haviam sido justamente reconhecidas em sua relevante função de sentido e nas peculiaridades de sua experiência.

Embasados nesta excelência que nos dispensamos de pormenorizar, os numerosos estudos comparativos entre a psicologia de Jung e o Espiritismo, ressaltando-se indubitavelmente a obra de Joanna de Ângelis, revelam-se pertinentes e apreciáveis no que tange a formulação de uma futura e mais ampla ciência da alma.
De nossa parte observamos nas obras desta autora uma fantástica sensibilidade para as nuanças psicológicas que não necessita estar vestida sob um tecnicismo aparente, , ao contrário, experiência e ciência abrangentes dos fenômenos mais variados da vida psíquica. Aos críticos da linha psicológica de Joanna de Ângelis, alguns dos quais alegam que a obra não atinge o objetivo de estabelecer uma psicologia espírita, escapam as prerrogativas e premissas lucidamente declaradas nas entrelinhas do texto, as quais invertem de maneira satisfatória estas mesmas críticas.

Esperam os polemistas que Joanna parta de Jung para o Espiritismo, quando ela insiste em fazer o inverso, escapando, assim, de aplicar ao Espiritismo uma ciência cujos fundamentos conceituais são extremamente vagos. Não é preciso grande conhecimento sobre o assunto para reconhecer que as dificuldades quanto a credibilidade de Jung estão na fundamentação de sua análise, o que igualmente se aplica a Freud. Os resultados saltam aos olhos, a perspicácia revela assombrosa intuição e poder de observação, mas o ponto de partida carece de uma justificação filosófica exaustiva, comprometendo tanto a solidez teórica. Com o Espiritismo ocorre o oposto; já que a psicologia é inteiramente desdobrada de uma bem estabelecida filosofia prévia. Na ordem teórica seguem-se a justificação da validade do conhecimento espírita em geral, a cosmologia e o estudo do sistema da natureza em seus detalhes (incluindo a natureza da alma humana) e só então chega-se ao interesse nos detalhes da vida prática. A psicologia está, desta forma, amplamente escorada sobre uma visão de mundo onde o homem encontra-se elucidado como ser espiritual, radicado na carne e a ela conectado por um corpo energético. Este ser está contextualizado num mundo que possui fundamento moral objetivo, sendo por isso afetado por choques de realidade no contato com valores concretos que traz em seu íntimo, e possui um histórico de vidas pretéritas cujos efeitos podem ser rastreados para critério de esclarecimento de tendências e situações críticas do presente. Todos estes elementos estão ausentes na moderna psicologia atual que se vê em conflito com a visão de mundo materialista da ciência a qual quer pertencer. Por isso, mesmo ao negar esta concepção de mundo, uma teoria como a de Jung acaba por abdicar da fundamentação por ela mesma exigida, abstendo-se de afirmar qualquer coisa sobre sua proveniência, condenando-se a posição de sistema excelente, mas cujas bases precisam ser lançadas como que do nada, e a critério de confiança.

Até onde podemos ajuizar, o que não significa que assim seja realmente, Joanna de Ângelis está a lançar diante de nossos olhos um projeto psicológico inteiramente fundamentado pela metafísica e cosmologia espíritas, e isto há décadas sucessivas, sem que alguém se dignasse de secundá-la no esforço de sistematizá-lo em linguagem acadêmica; os terapeutas e investigadores espíritas parecem acolher com muito mais satisfação as precárias e quase dogmáticas formulações da psicanálise ou da psicologia analítica ao invés de assumirem uma psicologia integrada a um sistema de conhecimento plenamente fundamentado, e que lhes está à disposição. Será que o fazem por imaginar que a disciplina acadêmica seja mais criteriosa do que a doutrina não acadêmica do Espiritismo? Ou apenas porque a linguagem destas escolas soa melhor em público, enquanto a linguagem do Espiritismo fica melhor restrita ao âmbito privado? Seja qual for o motivo, uma coisa é certa: do ponto de vista filosófico o Espiritismo permite a análise introspectiva de acordo com sua visão de mundo, a maioria das correntes de pensamento contemporâneo não o faz. Com isto elimina-se a primeira pergunta. A segunda deveria igualmente descaracterizar-se, na medida em que as idéias mais bem fundamentadas deveriam sempre soar melhor do que as vacilantes, em qualquer círculo social.


Bibliografia:


JUNG, Carl G. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984.
JUNG, Carl G. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 1997.
JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1980.
KIDD, I. G. Posidonius: III. The translation of the fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.


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[1] KIDD. Posidonius: III. The translation of the fragments. Pg. 19.
[2] C. G. JUNG. Psicologia do inconsciente.
[3] O que nos parece implícito em A vida simbólica e A dinâmica do inconsciente.

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