trecho do artigo científico "Subjetivação e cura no Neopentecostalismo", publicado na revista Psicol. cienc. prof. v.28 n.3 Brasília set. 2008. Artigo completo aqui http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-98932008000300012&script=sci_arttext
Neopentecostalismo, desamparo e condição masoquista
O desamparo é marca que possui uma força expressiva de tradução dos modos de subjetivação na contemporaneidade.
Num primeiro plano, aponta o declínio da razão universal e do projeto iluminista que predominaram durante a modernidade e reivindicaram a possibilidade de trazer a emancipação humana para além do universo das crenças. De fato, seus ideais de evolução e transformação ruíram com o declínio da modernidade.
Para Forbes (2004), a queda dos alicerces que sustentaram o projeto iluminista e a razão universal durante a modernidade trouxe como conseqüência o declínio dos valores da sociedade tradicional e resultou em uma ausência da figura simbólica do pai na cultura. Em sua visão, no cerne desse processo, pode se compreender o surgimento do sentimento de desproteção e o enfraquecimento dos laços sociais.
Diante da nova configuração sociocultural da contemporaneidade, o problema evidenciado não é tanto o desamparo ou a fragilidade imanente à condição humana, mas sim, os destinos dados pelo sujeito à sua condição de desamparo. Diz Forbes (2004):
...A questão relevante é procurar saber que destinos o sujeito consegue dar para sua condição de desamparo, uma vez que esta tanto permite ao sujeito uma liberdade de ser, de criar seu mundo singular, quanto pode conduzir a formas alienantes de subjetividade. (p. 73)
Assim, um problema que se coloca é saber de que modo o desamparo na sociedade hipermoderna se articula com as transformações ocorridas nas últimas décadas, sobretudo tendo o olhar voltado para o fenômeno do neopentecostalismo. As saídas da experiência de desamparo construídas na contemporaneidade parecem apostar nas vias do imaginário em detrimento das possibilidades simbólicas. Aqui, a evidência é conferida a um eu inflado, com as características de um narcisismo patológico.
Outro investimento possível frente ao desamparo na ordem cultural se dá pela posição masoquista. Esse parece ser o campo construído nas relações processadas no interior das igrejas neopentecostais.
Diferentemente dos masoquismos feminino e moral, que integram o que recebe em Freud a designação de masoquismo secundário, no masoquismo erógeno, o desamparo não é marca de característica negativa, porquanto desvela o que é identidade estrutural humana. No masoquismo erógeno, o sujeito acolhe sua fragilidade não como aquilo de que se deve escapar, mas sua fragilidade é o que permite sua vinculação subjetiva na ordem do desejo, sua implicação com as demandas da vida.
Ao contrário, no masoquismo feminino e moral, o que importa, mais que a associação do prazer com a dor, é uma posição de assujeitamento ao outro como possibilidade de saída do desamparo. Aqui, o sujeito não é vítima da situação, posto que o que nela se busca é a ilusão de proteção que se alcança na relação com uma figura tirânica.
Os modos de subjetivação presentes nas igrejas neopentecostais parecem mostrar essa forma do masoquismo feminino e moral. As igrejas neopentecostais sustentam a possibilidade de que haveria esse universo paradisíaco na vida daqueles que a elas se moldassem.
As diversas construções discursivas relatadas ao longo deste artigo, que desvelam o universo das promessas religiosas para a vida do crente, insistem que é possível ao sujeito encontrar e ter uma vida de pura felicidade.
No entanto, sabendo-se que não existe cura para a condição estrutural do desamparo humano, a questão inicial que retorna diz respeito ao que põe o sujeito permanentemente a demandar se as promessas gestadas no interior das igrejas neopentecostais não são alcançadas. A esse respeito, deve-se ter em mente o que diz Macedo sobre a fé virtuosa: “Para o cristão, não existe o ‘não posso’, nem o ‘isso é difícil’. Não, não e não! Você pode todas as coisas, se assim crer” (Macedo, 2000, p. 40).
Para os neopentecostais, DEUS, pode tudo, até o impossível. Mas, eu preciso me submeter a ele, "temê-lo" e amá-lo |
Desse modo, se as bênçãos não se efetivaram na vida do crente, é porque a ele ainda falta a fé vitoriosa, e isso significa a permanente potencialização da demanda pela medida do assujeitar-se ainda um pouco mais, algo que remeta à idéia de que o sujeito ainda não deu tudo de si ou não deu a si mesmo suficientemente ao outro que tem, mas insiste em esconder o objeto da falta.
Pode-se, assim, falar da existência de um princípio de promessa que, em si mesma, sustenta a impossibilidade de cumprimento. E é porque não pode ser cumprida que a promessa potencializa indefinidamente a demanda e marca a condição do processo de subjetivação pelo laço do assujeitamento.
De acordo com Birman (2005), podem-se compreender os processos de reevangelização que são empreendidos pelas religiões no mundo contemporâneo como movimentos de busca de proteção contra o desamparo. Os fundamentalismos se inscrevem nessas promessas de segurança e de verdades inquestionáveis que dariam precisão e consistência à vida.
Os discursos e as práticas fundamentalistas têm crescido expressivamente nas sociedades contemporâneas. Exemplo disso são os diversos estudos feitos sobre os fundamentalismos católico, protestante, islâmico, neoliberal e técnico-científico. Se isso, à primeira vista, parece sustentar um paradoxo dado as conquistas de emancipação humana através das promessas iluministas, não se pode perder de vista, porém, que as transformações ocorridas na atualidade são vividas sob a forma de crises que deixam patente o desencanto com um mundo que parece perder seus fundamentos e substancialidades.
Os processos de subjetivação que são gestados no interior das igrejas neopentecostais parecem aprisionar o sujeito numa lógica de relação intersubjetiva que já lhe é familiar. O que aqui se evidencia é uma aposta numa forma de relação que é balizada pela medida do autocentramento e do apagamento da alteridade do outro, nada muito diferente daquilo que constitui o primado ou a força de sustentação do individualismo das sociedades neoliberais.
É a partir dessa perspectiva, retomando as contribuições iniciais de Deleuze, que se pode estabelecer uma ligação entre a lógica do modo capitalístico de subjetivação e a ética neopentecostal. Parece existir uma simetria entre esses dois campos de forças quanto ao aprisionamento do sujeito numa economia subjetiva de autocentramento que é viabilizada às custas do sacrifício dos vínculos com a alteridade. Mesmo que as celebrações religiosas dêem a idéia de uma grande quantidade de pessoas reunidas, pode-se observar que a demanda se dá em função de aspirações individuais, já que os pregadores sustentam discursos que aprisionam os fiéis nesses movimentos individualistas de demanda. Pode-se, assim, postular a inexistência ou a fragilização dos laços sociais em meio às grandes concentrações de pessoas no campo religioso.
A realidade histórica, a partir da qual são processadas as subjetividades regidas pela ética neopentecostal, está remetida ao universo do neoliberalismo. Pode-se ainda dizer que o neopentecostalismo não constitui uma força estruturante de oposição ao neoliberalismo.
Assim, os processos de subjetivação inaugurados pelas igrejas neopentecostais põem em relevo a implicação de diversos campos de forças que se articulam na captura ou na constituição de novas possibilidades de existência humana. Atualmente, o processo midiático tem sido um campo especialmente utilizado nessa direção. A revista Veja, do dia 5 de dezembro de 2007, publicou uma matéria, de Rafael Corrêa, intitulada “Os Templos Espetáculo”, na qual salienta que, nos novos templos gigantescos, o culto tem se constituído em um show, e o pastor tem se tornado o astro principal (Corrêa, 2007).
Assim, torna-se importante salientar os campos de forças que estão permanentemente implicados e que promovem a flexão ou a curvatura nos processos de subjetivação.
Inicialmente, deve-se considerar que a demanda de cura explicita o enlaçamento do sujeito diante da produção da promessa. Esse sujeito não representa uma vítima, porquanto a provocação da possibilidade do encontro com um reino humano de pura felicidade – cura – se encontra com sua aspiração por uma vida de inteireza. O sujeito, mais do que ser capturado, na verdade, agarra-se a essa promessa. Ele ouve o que quer ouvir, mesmo que o que lhe seja falado pertença à ordem do impossível. O sujeito, afetado pelas condições de fragilidade em sua corporeidade, imagina poder se livrar de toda forma de sofrimento (primeira dobra).
A demanda de cura, que constitui um campo de força e promove a entrada em novos modos de subjetivação, é potencializada pela confiança de que Deus honrará sua promessa para aqueles que têm uma fé verdadeira. As narrativas e as explicações do universo subjetivo, moldado pelo crivo da fé, dão sustentação a uma racionalidade que indica a compreensão de uma subjetividade privatizada. Trata-se da relação de força que é vergada para constituir uma relação consigo mesmo (segunda dobra).
A ética se apresenta como uma conseqüência imediata e direta para a delimitação dos campos de constituição da subjetividade. Para usufruir de todas as bênçãos possíveis, exige-se que o fiel se molde dentro das lógicas de compreensão dos saberes instituídos nas igrejas neopentecostais. É na terceira dobra, a do saber ou da verdade, que se estabelece a relação da verdade com o ser e do ser com a verdade. Aqui se pode falar de uma subjetivação do saber sob a lógica neopentecostal. É à luz desse saber que se institui a métrica ou o enquadramento do processo de subjetivação do crente. Nesse processo, vive-se o regime do pensamento único, que abole o respeito às diferenças e que descarta a inclusão de qualquer forma de pluralização de possibilidades para a vida humana que contrastem com a vertente religiosa.
A métrica desse processo parece se dar pelo regime do assujeitamento. Se o sujeito ainda não usufruiu das bênçãos almejadas, é porque a ele ainda falta uma fé vitoriosa e porque também não se deu plenamente diante das exigências que lhe são feitas. Investimento subjetivo de plena interioridade e afastamento das realidades mundanas parecem constituir dispositivos que atualizam a quarta dobra deleuziana em seu movimento de dupla captura através da cisão entre dentro/fora, indivíduo/sociedade. É aqui que repousa a esperança do sujeito na salvaçãocura. A flexão ou dobra desses campos de força parece desvelar um sujeito imerso no eu ideal que sustenta uma posição imaginária de onipotência. Pode-se aqui falar de um princípio de negação da castração. O sujeito que acredita ter um contrato de parceria ou sociedade com o próprio Deus, no campo de suas demandas de vida, vê-se vocacionado à realização plena de seus desejos.
Desse modo, as demandas observadas no interior das igrejas neopentecostais indicam sujeitos no permanente exercício de busca de uma satisfação pessoal exacerbada. Nessas condições, pode-se falar de um fenômeno religioso desinstitucionalizado, subjetivo e afetivo.
Finalmente, pode-se dizer que a ruptura com uma perspectiva naturalista de compreensão da constituição da subjetividade, que evidencia o sujeito somente a partir de suas características intrapsíquicas, permite a indicação de um espaço de interfaces necessário para a pesquisa sobre os modos de subjetivação. Desvelar o fenômeno religioso na multiplicidade de seus campos de forças, implicado em seus desdobramentos e intensidades com o mundo no qual está inserido, e, sobretudo, como gestor de novos modos de subjetivação, constituiu o objeto de estudo deste artigo.
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